Colunista
Ernani Buchmann

08.04.13
O homem com dois lados esquerdos

Dizem que, ao nascer, eu tinha sobrancelhas tão avantajadas que podiam ser penteadas e misturadas aos cabelos. Vale dizer que me faltava testa. Ainda que estivesse lá, não posso comprovar, não só pela óbvia falta de lembrança, mas também por alguém ter destruído as poucas fotografias do monstrinho em fraldas. Desconfio que a história seja mentirosa, eis que hoje não porto sobrancelhas de qualquer tamanho, assim como houve desproporcional crescimento da testa, a avançar ao meio do crânio.

Pior se deu quando me descobriram canhoto. Eu via o mundo pelo lado esquerdo, tropeçando nas cadeiras, derrubando o que quer que mandassem segurar.

Marchei com o pé esquerdo à frente, todo garboso, até o diretor da escola mandar que eu assistisse ao desfile do lado de fora, para ver se aprendia. Fiz minha estreia no teatro em uma peça infantil em que a diretora, talvez pelo talento dramático demonstrado nos ensaios, me escalou para o papel de ovo. Ao entrar em cena, um prego traiçoeiro na saída da coxia espetou o elegante traje de papel crepom amarelo, obrigando-me a avançar pelo palco segurando a fantasia. A interpretação durou poucos segundos, antes de um assistente retirar aos puxões o canhestro aprendiz.

Consegui terminar com duas festas de 15 anos. A primeira caindo sobre uma porta de vidro e espalhando cacos por todos os que dançavam. Na segunda festa, o papelão foi maior. Assustado com a abertura repentina da porta em que me apoiava, joguei para cima o copo de coca-cola, ou cuba-libre, que trazia na mão, o suficiente para acertar o colo virginal da aniversariante que por ali entrava.

Também, agora em uma festa de formatura, quebrei um copo de cristal checoslovaco, curioso em saber o que era mais forte, se o cristal ou o gelo do whisky. Descobri que era a língua da dona da casa, chamando-me de estúpido.

Caí muitas vezes, sem preconceitos. Caí enquanto estava em pé, sentado e deitado, na cama. A queda mais escandalosa se deu em auditório do Rio de Janeiro. Todo pimpão eu descia a escada do palco, levando nas mãos um projetor e um carrossel de slides. Mas, não tendo a habilidade de agradecer e andar ao mesmo tempo, despenquei. Ainda sob as gargalhadas dos presentes, me esgueirei por uma portinhola embaixo do palco. Saí na Avenida Presidente Vargas, onde embarquei em um táxi e, minutos depois, em um voo da Ponte Aérea. Fui para São Paulo me esconder da vergonha.

Dias atrás, consegui a façanha de cair de costas, machucar o ombro, lascar a canela direita e luxar o dedinho da mão, levando comigo a cadeira em que estava sentado e um fichário de aço, tudo isso partindo da velocidade zero. 

Tropecei com meus filhos no colo diversas vezes, dei com a cabeça em vigas, acertei a colher da panela de arroz ao bater na mesa. Foi a única vez em que uma família almoçou sob chuva de arroz cozido.

Os aviões são a minha especialidade. Já meti o pé naquela borracha que separa a escada da porta, deixei o celular cair sobre o Rolex do vizinho de poltrona, andei de gatinhas procurando os óculos que desapareceram em uma aterrissagem forte. Até meu paletó já se afogou naquele gavetão, por conta de vazamento no ar condicionado.

Mantenho as esperanças de zerar os desacertos com a evolução da ciência, talvez a instalação de um chip no cérebro. Sim, manter o otimismo é virtude que exerço dia a dia, exceto quando estou tropeçando. O que, a propósito, me toma todo o tempo.

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