Colunista
José Gilberto Maciel

08.04.13
Correspondências violadas

Eu violei parte das cartas das mulheres da minha vida. Cartas escritas entre os anos 80 e 2000. Lá se vão 30 anos e uma verdadeira revolução na troca de informação. Passamos das cartas, telegramas, telefones para e-mails, msn, facebook, twitter, mensagens pelo celular, blogs, fotologs, videologs, chats, salas de bate-papo, videoconferências, outras ferramentas, plataformas e tecnologias da informação.

E as cartas como ficam nesse universo eletrônico? Para mim que usa parte dessa parafernália como instrumento de trabalho e torce o nariz para a moçada baladeira que fica igual moto-contínuo na frente das máquinas, as cartas mostram mais dos amores, desejos, sonhos e frustrações. Nada mudou nos últimos 30 anos.

 

Carta 1

Eu cheguei em casa depois de um dia terrível e procurei no fogão, na geladeira, nos armários nas gavetas do meu guarda-roupa, no cesto do banheiro, na privada, debaixo do chuveiro, na minha gaveta de recortes, na de achados e anotados, no meio dos meus documentos, dos meus registros.

Sai e procurei nas mesas da cidade, entre uma estrela e outra, entre as folhas de outono que o vento derrubou, entre as pessoas que, como nós, travam e conspiram.

Procurei um minuto a mais de felicidade nessa vida...

Eu procurei, procurei...

O que falta para o meu gozo e meu riso é uma dose, uma dose mais forte.

Vem ficar comigo só mais uma noite.

 

Carta 2

Doce poeta, as tuas cartas...

elas são como fazer amor com você e ir rolando de linha em linha.

Eu te amo muito mais que você. Eu fumo, bebo, caio e espreguiço toda

feito uma gata e nada acontece.

Mas a coisa toda não é muito mais que isso.

Você sabe que não.

Eu li o seu jornal e cada página que virava,

eu ficava procurando onde você tinha colocado

a “gente” dessa vez.

Foi lindo, divino.

Um beijo no seu pauzinho por mais esta conquista

Baco nos abençoe

Tua Vênus Delírio

 

Carta 3

Você é mesmo um egoísta.

Eu não te dei o direito de acabar com algo que não te pertence.

Você só atrapalha, tem muita pressa, não sei porquê.

Você vive me cobrando, dizendo que não é por aí,

mas sempre cobra aquilo que também não me pertence.

Eu não posso resolver.

Seria tão fácil deixar as coisas rolarem.

Não porque eu tenho um namoradinho e você tem outra, que nós temos, nós não.

Você tem que terminar, dar nome às situações.

Tudo bem, você não quer mais saber de mim

que eu deixei de existir para você.

Eu não vou conseguir ser outra pra você.

Se você não me quer mais assim, então

Bye, tchau.

 

Carta 3

Segunda chamada final!

Porra que ira, que enorme descarga adrenergética que

está me consumindo agora. Qual é a sua?

Você está literalmente me sacaneando, combina uma porrada de coisas e asneiras para não cumprir.

O que pior, é que você está com a letra, seu idiota.

Você não sabe nem inglês, nem dos Beatles e muito menos tem a sensibilidade com os outros. Chega, porra!

 

Carta 4

Acabou o ano que quase acabou comigo. Na semana passada, eu tirei a última pétala da margarida que eu brinco de bem-me-quer.

Não sou mais a Jane Eyre, não sou mais a amiguinha do professor de biologia, não sou mais a gata de ninguém. Sou eu mesma, ex-modelo, ex-atriz, ex-estudante de universidade (thanks God). Da outro sobrou o registro de nascimento, o RG, CIC, CRQ e uma memória que é mais que uma arma, é uma arma apontada pro meu umbigo.

Acho que vou mudar daqui.

É muito foda você ter que ficar se convencendo de que o que você está fazendo é melhor pra você, quando já está dentro da situação.

Mas se tantas vezes o pudim virou meleca, quem sabe agora, mais madura, eu tenha o dom de transformar meleca em pudim.

Dia 2 de fevereiro saiu o resultado do vestibular, um amigo me convidou pra comemorar no Dinho’s Place Morumbi. Frescuras de rico, programas poucos inventivos.

Queria mesmo era outras coisas.

Zé, seu puto

fica comigo e vigia

beijos

 

Carta 5

Você está bem?

Eu acabo de sair de uma crise provocada pelo excesso que você chamou de lucidez. Não fui para Maceió (falta de grana, confusão, etc), fui para o Guarujá e voltei ontem.

Eu aprendi muito sobre a minha pessoa nas últimas três semanas.

Vivi emoções diversas, inclusive o ciúme que você não ensinou a sentir. Aliás, o que me intriga é aonde eu aprendi esta coisa intragável.

Eu vou continuar fazendo o mesmo curso na escola porque tenho o rabo preso (melhor dizendo, a bucetinha presa) lá.

Hoje eu sou uma mulher decidida.

Comemore por nós, este momento passageiro. Tchau.

 

Carta 6

Amor

Cê foi embora, esqueceu meu coração aqui.

Cadê tuas palavras, estilhaços poéticos?

Nada se ouve do outro lado do aparelho inventado

em algum maldito dia, pelo genial Grahan Bell...

Hoje a lavadeira foi lá em casa.

Lavou os lençóis.

Bem quis guardá-los intocados

em noites de mato sem cachorro

achar a pista de um tesão saudosamente imaginário.

Não deu, a realidade é dura.

E o dinheiro para comprar os lençóis novos?

Por falar em realidade, subi o Santa Marta.

Senhas

(um grita “comando” e outro responde “vermelho”)

Ordens, engatilhar de armas, conspirações,

assovios em códigos.

Parecia que, como a Rosa Púrpura, tinha entrado num filme.

Um avião do Cabeludo ficou a fim de mim

me cantou direto, mas nem ofereceu uma carreira.

Gato, saudades

Espero notícias, malícias e sevícias postais

Cravo minhas unhas nas tuas costas e te digo

Tchau

 

Carta 7

Passagens

Estação Tatuapé

Todas essas luzes são para mim

Cláudia, 18 anos, química analista

tem um filho que não é seu

de um homem que não é seu

se envolve sempre com as pessoas erradas

procurando as emoções certas...

Sou ou não sou digna de todas essas luzes

(Metrô: Penha-Santa Cecília)

Corredor da Escola

De um lado o vidro do mural

do outro a parede suja

e eu penso e questiono

qual dos dois lados me espelha

(laboratório da escola em que fazemos aspirina)

No trabalho

Eu partir de hoje

só vou trabalhar

o tanto que ganho, que pagam

(foi o que eu disse para minha chefe no dia do pagamento)

Essas coisas todas

você faça o favor, conte para o mundo

se a gente não tiver tempo de contar juntos

ainda te mato

entre altos & baixos

não dá para ser feliz

 

Carta 8

1º de jul de 87 (d’apres tumulto)

Gatíssimo

O Rio mostrou os dentes ontem à noite. Bem feito para quem sempre disse que o povo, especialmente o carioca, é cordial. A manifestação de ontem provou que aqui as pedras doem tanto quanto em São Paulo ou em qualquer lugar do mundo. Adorei.

A coisa ta ficando preta. Polícia Federal rouba nome dos filiados do PDT. Aureliano vem ao Rio com um verdadeiro exército a tiracolo. Bombas explodem por dois dias seguidos. Tentativas de saques na baixada se repetem. Revolução ou golpe? Sei não...

Bem esta cartinha é para matar as saudades (donde estás, que não respondes?) e contar que as fitas estão na rádio desde a sexta passada. Esqueci de te dizer quando liguei, no domingo. O carinha (como diria você) disse que poderá gravar uma a uma, e ir remetendo separadamente, ou gravar tudo junto. Optei por ficar pronto tudo de uma vez, só que vai terminar daqui a mais ou menos uma semana. Tem problema?

Como faço pra mandar pra você? Não sei qual a forma mais segura, se pelo correio ou algum outro sistema de malote. Pesquise, please, e me dê instruções. Aguardo mensagem. Câmbio.

....bem de novidade, é só. Estou trabalhando feito uma idiota, saio as 23h30. Tinha entrado às 9h. Estou morta, afim de umas férias, especialmente se acompanhadas de um gato pós-pós. Que tal providenciar um comando palestino para me raptar para Ilha do Mel por uns dez dias? Com o resgate, a gente faz a festa.

Saudades gato. Tenho de encerrar, pois está na hora de seguir para mais um esfalfante dia de trabalho (comovente, não?). Mil beijos, unhadas, mordidas, etc...(o etc é o melhor).

 

Carta 9

Quando eu decidi sair de São Paulo, liguei para todos os meus amigos e saia cada dia com um pra fazer a mesma coisa e dizer sempre as mesmas palavras.

Teve um dia que isso perdeu o sentido. Foi então que conheci um outro cara, que me mostrou uma outra nuance de todas aquelas coisas que eu vinha fazendo.

Novamente a aventura, a identidade. A gente é uma coisa de louco.

.....

Não vou falar mais dos meus gatos, porque sempre acabo passional demais, sem perceber.

Foi mais ou menos isso que rolou sob o céu de Sampa e é por isso que escolhi esse mesmo céu pra te contar todas essas coisas, e na minha cama onde um dia, estivemos buscando carinho ou prazer.

Beijo

 

Carta 11

Eu peguei o nosso filho e estou em Buenos Aires. Não quero mais voltar. Não te suporto mais e suporto mais essa cidade.

Eu sei que esse não é momento e que seu pai acabou de morrer, mas não encontrei outra alternativa. Se quiser sabe se eu gosto de você: é claro que te amo e é claro que nosso filho é lindo, mas a nossa vida se transformou numa loucura, irracional, insana, despropositada e doentia.

Tenho que ficar aqui por uns tempos. Rever meus amigos, meus parentes, minha mãe, irmãos e irmãs. Vou procurar trabalho.

Sei que é difícil para você que já tem outros dois filhos que não moram contigo, mas compreenda que nem sempre a razão fala a voz do coração.

Te quero, te amo, só não suporto a forma como você leva a sua vida.

Vou parar por aqui.

Venha para Buenos Aires.

 

Carta 11

Esta cidade tá me virando do avesso, amanhã eu vou gravar propaganda pra “Kibon”, legal, NE? Todos esses lances que eu fui chamada é um clima muito diferente.

É bom, mas ao mesmo tempo é um ambiente muito foda. Muita aparência e puxação de saco. Não sou muito chegada nessas coisas. Eu tô deixando rolar bem natural. Se a agência me chama, eu faço o teste, mas não tô a fim de ficar batendo de porta em porta com o meu book debaixo do braço.

A TV foi o único meio pra você me ver, né? (ou será). Nem mais me iludir com as suas cartas pseudo-românticas você não o faz.

Sinto tanta saudade, tanta angústia por não saber de você, não ver o gatinho....outro dia eu pensei em comprar uma roupinha pra ele com o dinheiro que recebi da TV Bobo, mas ele deve estar grande e tão grande, e tão bonito, ia ser difícil achar uma roupa ‘parecida’ com alguém que eu não sei mais como está parecendo.

Eu queria muito que você viesse, sei lá, queria morar num lugar em que a gente pudesse ficar mais a vontade. Você falou da viagem e depois não falou mais nada, sei lá. No ano passado, isso me deprimiu demais, você não sabe quanto.

Esse ano, não sei, eu tenho reagido muito por ‘choques retardados’, sei lá. Eu só percebo as coisas algum tempo depois que o lance ocorreu.

Queria ter uma palavra mágica que te trouxesse para cá.

Já experimentei: necessidade, carência, saudade, você é muito durão. Meu nome artístico leva o teu nome, a tua cumplicidade. É puro transporte pra fantasia do que eu não tenho na realidade.

Grande Zé, te espero

Beijos

 

Carta 12

Nesta madrugada, sonhei com você (um sonho apenas superado pelas visões da “pequenina polegara”).

Hoje, toquei você novamente, senti você...como antes...como há 20 anos.

Queria saber como você está, mas tenho medo se a vida não tiver sido boa para você (me conte uma mentira. É só uma carta. Ou escreva mais um poema como muitos outros no passado).

Cheguei no hotel e fiz o que devia ser feito.

Uma carta escrita à mão, nos dias onde tudo é digitado. Uma carta com direito a selo e lambida no envelope. Não é um email.

Agora, sou professora universitária, tenho 34 anos, casada e sem descendentes saudáveis. Como vê, ainda estou em dúvida quanto ao meu papel biológico na sociedade.

Meu marido é 16 anos mais velho do que eu e ainda não sei como mandar esta carta pois ele seria incapaz de entender que Deus criou o homem, a mulher, a amizade, o amor, o casamento, o céu, a terra e o Zé.

Não acredito, não pode ser verdade que você faça parte do meu passado, como ele sempre diz.

Ainda não são 7 horas da manhã e estar aqui, te escrevendo no único papel em branco que eu tenho (as costas de uma folha de prova) já foi emoção demais para um dia.

Zé, aprendi o amor com você e esta carta é só pra te dizer que eu não esqueci, mesmo que muito, muito tempo tenha se passado.

Tags:









TAMBÉM NOS ENCONTRAMOS AQUI: