Colunista
José Augusto Ribeiro

03.07.15
O caso Fifa e a occulta compensatio
Ilustração: Carlos Garcia Fernandes

Se causou surpresa, o caso Fifa não deveria causar. Mesmo quem não acompanha as partidas e peripécias do futebol não escapava – e isso aconteceu permanentemente no Brasil na contagem regressiva para a Copa do Mundo do ano passado – ao noticiário frequente sobre episódios muito suspeitos e suspeitas muito verossímeis. Aliás, não haverá surpresa se a Lava Jato transbordar para os contratos de construção de novos estádios por aqui...
Nem surpresa nem novidade. A corrupção não nasceu com o futebol nem com o capitalismo, embora ambos tenham servido muito a ela e se servido dela sem a menor cerimônia. Já no século 13, há quase mil anos, centenas de anos antes dos primeiros vagidos do capitalismo e do futebol, o maior teólogo do catolicismo, Santo Tomás de Aquino, falava na occulta compensatio, a compensação oculta a que alguns recorriam para repor o que supunham ter faltado em sua remuneração ou em seu lucro. Também para Santo Tomás não podia ser novidade a corrupção a pretexto da compensação: já nas histórias de um passado remotíssimo contadas na Bíblia, estava a de Jacó, que enganou Isaac, o velho pai cego, para roubar ao irmão Esaú, em troca de um prato de lentilhas, a benção que lhe pertencia como filho mais velho – a benção e a herança.
Se vivesse nos dias de hoje, porém, Santo Tomás certamente observaria, com o mesmo humor, que a fase atual do capitalismo, a partir do arrastão neoliberal da década de 1980, reduziu muito a faixa dos atos não permitidos na vida econômica, aumentando exponencialmente a faixa da permissividade. Muita coisa que antes as pessoas teriam vergonha de fazer passou a ser perfeitamente normal. Na área dos costumes, a permissividade veio antes, talvez a partir da década de 1960, sobretudo com a pílula anticoncepcional, e liberou a vida sexual principalmente para as mulheres. Excluídos casos como o das drogas, a permissividade dos costumes foi e é um fenômeno saudável. Já a permissividade econômica, com a desregulamentação geral das atividades empresariais e conexas, mostrou-se logo um fenômeno perverso.
Para ficar num caso apenas, ou melhor, numa única particularidade de um caso escandaloso e revoltante, vamos lembrar o que aconteceu com a empresa Enron, gigante do petróleo e gás nos Estados Unidos. Ela tantas fez que quebrou espetacularmente, lesando não sei quantos milhares, se dezenas ou centenas ou ainda mais, de acionistas iludidos. Além dos acionistas, a Enron não teve o menor escrúpulo com seus milhares de funcionários. Induziu-os a trocar seu plano de previdência, que era o do benefício definido, pelo da contribuição definida, que permitia investimentos verdadeiramente irresponsáveis e, no estouro da empresa, estourou junto, deixando essa multidão de funcionários sem emprego e sem qualquer socorro previdenciário.
O caso da Fifa, que culminou  com a renúncia de seu Presidente, Josef Blatter, quatro dias depois de reeleito, agora para um quinto mandato, mostra a occulta compensatio em escala planetária. Além de certezas sobre a concessão de direitos de TV para o mundo inteiro, suspeitas de caminhões de dólares para a Fifa sediar uma Copa na Rússia e de outros caminhões para a ter sediado na África do Sul em 2010. Quem sabe, amanhã, a suspeita de que a Copa no Brasil também foi comprada.
O caso Fifa não pode deixar de lembrar nossa Operação Lava Jato, que vem de mais tempo e tem proporcionado, pela TV, sucessivos episódios dessa cultura da corrupção que se espalha indiscriminadamente por empresas, países, instituições e governos. Um recente episódio na CPI da Lava Jato mostrou, inclusive, como certas pessoas perderam completamente a vergonha, se é que algum dia chegaram a tê-la. Uma senhora de sobrenome Kodama, já condenada e parceira do doleiro Alberto Youssef, falava do relacionamento afetivo que mantivera com ele e pôs-se a entoar, gesticulando e fazendo caras e bocas, uma canção de Roberto Carlos sobre amantes, como se estivesse no papel de popstar em busca de aplausos, no auditório de um programa de televisão, e não como ré perante um colegiado com prerrogativas de tribunal. E a tal ponto chegou a tolerância do jovem e inexperiente presidente da CPI que ele demorou a interromper o show da trovadora improvisada e o fez quase pedindo desculpas, quando deveria interrompê-la incontinenti e adverti-la de que aquele surto de exibicionismo suburbano era um gesto desabusado de desacato à Comissão e ao próprio Congresso Nacional.
No caso da Fifa, Josef Blatter afirmou que não tinha como controlar seus colegas de direção, sete dos quais já estavam presos. No caso da Lava Jato não se pode admitir que os responsáveis pela Petrobras, na diretoria da empresa e, acima dela, no próprio governo, já que dois ou três diretores, pelo menos, foram agentes e beneficiários da milionária e profusa occulta compensatio, sejam daqui para a frente incapazes de impedir novos assaltos.
A vigilância e o fim da impunidade, porém,  não encerram o problema. De algum modo teremos de emergir do espesso nevoeiro da permissividade econômica que se estendeu sobre o planeta e nos cegou, coletivamente, para os verdadeiros horizontes de nosso país e da sociedade humana.

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