Colunista
Franco G. Rovedo

07.05.14
O tenente Rui e os poloneses

Em 11 de março de 1945, partiram de Pisa, na Itália, duas esquadrilhas do 1º Grupo de Caça para um ataque à ponte de Casarsa, ao norte de Veneza. A ponte em si não era problema, mas sim a forte defesa antiaérea que ainda se encontrava na região. Vários integrantes do grupo brasileiro já haviam sido atingidos pela FLAK, a artilharia antiaérea alemã, ainda mortalmente precisa e poderosa.

Rui Moreira Lima, um maranhense em sua 59ª missão de guerra, voaria como líder de elemento da esquadrilha Verde. Pouco empolgado com a missão por saber que o fim da guerra estava próximo, sua primeira ideia seria não participar, uma vez que eram voluntários e não seria prudente arriscar justamente em suas últimas missões. A coragem e o senso de dever sempre falavam mais altos nesses momentos. Apenas um piloto, entre todos brasileiros que foram voluntários, desistiu de combater antes da quantidade mínima de missões a ele destinada. Outros pilotos brasileiros combateram muito mais missões do que os pilotos aliados, que eram substituídos a cada seis meses.

A rota escolhida pelo capitão Lagares, comandante das esquadrilhas, foi desviar até Florença e só depois se dirigir até o alvo. O objetivo era evitar a poderosa resistência antiaérea de Bolonha, que já havia feito inúmeras baixas em todas as esquadrilhas que voavam naquela região do norte da Itália. No trajeto, passaram à esquerda de Forli, cidade recém-tomada pelo VIII Exército Inglês e já ocupada por um esquadrão de aviões de ataque formado por poloneses da RAF.

O alvo era uma ponte ferroviária sobre o rio Madunna, e sobre ela restava parado um trem de cargas alemão. Como era esperado, as baterias antiaéreas abriram fogo cerrado sobre os P-47 dos brasileiros. Rui avistou uma delas e decidiu atacá-la antes de bombardear o comboio. Mergulhou em direção à bateria alemã e foi recebido pelos obuses de 88 mm e outros de menor calibre. Rui metralhava a bateria enquanto era alvejado por ela. A cerca de 3.000 pés, o motor do seu avião foi atingido, iniciando um incêndio. Sem outra boa alternativa, Rui continuou o mergulho de ataque até que a bateria se calasse por completo. Segundos depois, baixo e a quase 700 km/h, comunicou que lançaria suas bombas no trem e depois saltaria de paraquedas.

O ataque dos outros sete aviões atingiu a região da ponte, mas apenas as duas bombas de 500 libras do Rui atingiram o trem de munição em cheio. Voando muito baixo, foi atingido pelos estilhaços da explosão das suas próprias bombas e a munição dos vagões. Ao sair do outro lado da bola de fogo, o avião estava com 28 buracos, sendo dois deles com cerca de 30 centímetros de diâmetro. Mesmo seriamente atingido e com o motor em chamas, a inércia levou o P-47 a 8.000 pés de altura. Sem visibilidade por causa do óleo no para-brisa e o fogo se alastrando rapidamente, comunicou que saltaria de paraquedas ali mesmo. A gritaria pelo rádio foi imediata e vinda de todos os outros pilotos. Não deveria saltar, pois seria alvejado pelas outras baterias antiaéreas que continuavam castigando as esquadrilhas.

Mesmo com a fumaça invadindo a nacele, e o fogo do motor derretendo o canopy, o tenente desistiu de saltar e passou a seguir a orientação do comandante Lagares. O óleo e a fumaça obrigavam Rui a voar apenas orientando-se pelos instrumentos; algo que não era coisa que soubesse fazer muito bem. As labaredas, que vinham do motor funcionando precariamente, lambiam o lado esquerdo da aeronave. Mesmo assim, o voo era estável e ascendente. Logo estaria sobre o mar Adriático e poderia saltar para que fosse apanhado por um hidroavião de resgate. Teria que usar seu bote inflável e esperar no mínimo por duas horas até a chegada do PBY Catalina de resgate.

A 12.000 pés, sua ânsia de saltar já não era a mesma. Era um piloto e não paraquedista, o que o levou a comunicar que tentaria uma manobra para apagar o fogo, antes de saltar. Mesmo sob os protestos veementes dos seus companheiros, decidiu desligar o motor e mergulhar, na expectativa que as chamas se apagassem. Como Rui acreditava, no mergulho a 600 km/h o fogo apagou e não voltou mesmo após nova partida do motor.

Aliviado, Lagares orientou Rui no rumo de Forli, onde haviam passado pouco antes e sabido que lá estava a base de poloneses da RAF. A pouca distância da pista feita de grades de ferro, e já alinhado à cabeceira, o comandante ordenou que Rui cortasse o motor e pousasse planando para evitar incêndio em caso de acidente. Desconfortável com o voo por instrumentos, Rui decidiu olhar para fora e determinar sua posição e altura. Imediatamente recebeu um jato de óleo no rosto. Com os óculos totalmente negros de sujeira e em um momento crítico do pouso, resolveu insistir: levantou os óculos. O resultado foi outro jato de óleo quente, só que desta vez direto nos olhos. Só houve tempo de cortar o motor e pousar de barriga para evitar atravessar o campo inteiro e se acidentar de forma mais violenta.

A grande aeronave escorregou distribuindo faíscas e pedaços de alumínio até que parou em segurança a alguns metros antes do final da pista. Rui abandonou a aeronave correndo e já imaginando as dificuldades que teria em se comunicar em inglês com os poloneses. Ambos não dominavam o idioma e isto seria um problema para receber atendimento médico e auxílio para retornar à base.

Longe o suficiente para evitar ser atingido por uma possível explosão, sentou-se em seu paraquedas e aguardou o socorro que já se encontrava a caminho. Três veículos se aproximavam: uma ambulância, um caminhão contra incêndio e um jipe. Tremendo de susto e com um olho completamente cego, ainda assim percebeu a imponente figura sobre o capô do jipe. Um oficial da RAF muito bem arrumado e condecorado. O loiro de 1,88 m de altura, que bem passaria por galã de cinema, gritou de longe:

— Brasileiro?

Confuso com a recepção, Rui respondeu em seu pobre inglês:

— Yes!

— Yes coisa nenhuma seu sacana. Como vão as mulheres de Copacabana? – respondeu o oficial em português.

Rui encheu-se de alegria. Ouvir seu idioma naquela situação era algo maravilhoso e inesperado. Sem aguentar a curiosidade, mandou a pergunta:

— O que é que estás fazendo com este uniforme da RAF?

A resposta esclarecia o bom português do oficial Frederick C. Tate: brasileiro, filho de ingleses, e nascido em Curitiba, Paraná. Tate comandava uma esquadrilha de Spitfires ingleses mandados a Forli para proteger os aviões dos poloneses, pois haviam sido atacados por caças alemães alguns dias antes. Sua ajuda foi de grande importância para poder receber os cuidados do eficiente médico polonês. Ali começava uma amizade que durou décadas.

Como um pirata de tampão no olho, Rui passou a noite angustiado para saber se havia mesmo perdido a visão. Dia seguinte, durante a troca de curativo no Hospital Central de Livorno, veio o alívio; não estava cego, embora ainda não enxergasse muito bem. Fredy lhe deu a boa notícia sobre seus olhos e o bom prognóstico, mas também avisou o problema que o esperava.

Os poloneses tinham uma tradição de que alguém que escapasse da morte como o Rui havia feito, seria obrigado a tomar um grande porre logo em seguida. O local escolhido foi o cassino dos oficiais. Enquanto a turma cantava uma vibrante canção polonesa, Fredy abastecia o copo de vodca pura. O olho bom não tardou a enxergar duplo e as palavras em polonês soavam cada vez mais estranhas. A cada canção o brasileiro gozador enchia o copo e obrigava Rui a tomar tudo em um só fôlego.

Assim que acordou do coma alcoólico no Hospital Central de Livorno, Rui Moreira Lima lembrou-se das últimas palavras do curitibano e piloto da RAF, Frederick Tate:

— Agora, meu velho... Estás fu...

*  *  *

A Força Aérea Brasileira nasceu no dia 20 de janeiro de 1941. No ano seguinte, no dia 31 de agosto, o presidente Getúlio Vargas declarou guerra ao eixo. Só em dezembro de 1943 é que foi criado o 1º Grupo de Aviação de Caça. Três meses após o desembarque na Normandia, em junho de 44, o grupo tinha acabado o treinamento no Panamá e partiu para a Europa, sendo o único país sul-americano a mandar tropas para o teatro de operações.

Imaginando que a guerra terminaria logo, o governo brasileiro não enviou reposições para os pilotos abatidos em combate ou impossibilitados de voar. Ao todo, quarenta e nove oficiais aviadores foram enviados ao Mediterrâneo, mas ao final de pouco mais de seis meses de combate restaram apenas 23 pilotos disponíveis. Todos voluntários comandados pelo major-aviador Nero Moura.

Durante oito meses, de outubro de 44 a maio de 45, o 1º Grupo de Caça, baseado na Itália, executou 445 missões. No dia 22 de abril de 1945, o grupo conquistou um recorde de quantidades de missões em um mesmo dia. Com apenas 22 pilotos, o grupo executou 11 missões e 44 surtidas.

O avião escolhido pelos oficiais e adquirido pelo governo brasileiro foi o P-47 Thunderbolt, sendo usado apenas para ataque ao solo, pois a supremacia aérea na região já havia sido conquistada. Cada missão era geralmente executada sob forte artilharia antiaérea inimiga e durava cerca de duas horas e meia de voo tenso e perigoso. A perda era de três pilotos por mês, em média. Do total de 47 que fizeram pelo menos uma missão de guerra, cinco caíram prisioneiros e cinco foram mortos em combate.

Para uma comparação das exigências que um piloto brasileiro enfrentou, é importante citar que um piloto americano passava para retaguarda ao completar no máximo 35 missões. O tenente Alberto Martins Torres fez 100 missões em combate.

Entre tantos heróis da aviação brasileira de guerra, deve-se destacar o major-brigadeiro Rui Barbosa Moreira Lima (Colinas, 12 de junho de 1919 – Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2013), que executou 94 missões na Itália. Um maranhense que representou o Brasil com bravura e honra. É para ele e sua família que nós aviadores mandamos nosso respeito e admiração, desejando bons voos ainda que em outro céu.

Este breve resumo é apenas uma homenagem aos brasileiros que já nos trouxeram orgulho e demonstração de caráter, tão em falta atualmente.

Senta a Pua!

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