Colunista
Susana Volpi

04.05.15
Otávio
Foto: Divulgação

Estava suado, teve que subir os sete andares de escada e por isso me entregou o paletó ainda na porta. Fiz uma cara feminina e quis cuidar de sua roupa, peguei a peça com cuidado e a alisei antes de pendurá-la na cadeira. No meu movimento, senti no bolso interno, lado esquerdo, uma caixinha. Otávio foi ao banheiro, lavar o rosto, se recompor do exercício fora de lugar. Aproveitei a solidão da sala e espiei o embrulho, fita vermelha como selo, tive a certeza: uma joia; poderia ser brinco, pingente, anel, aliança. Julguei anel, anel de noivado.
Quando Otávio retornou, tudo estava no devido lugar, paletó na cadeira, cadeira encostada na secretária e eu no sofá. Conversamos sobre o seu dia e as confusões no trabalho. Falamos sobre minhas pinturas e as dificuldades em vendê-las. Citamos vidas de alguns conhecidos. Também tratamos do corte das roseiras da casa do outro lado da rua, o novo dono resolveu fazer a triste transformação no jardim.
Minha cabeça só pensava no anel de noivado.
O convidei para ir ao ateliê, que era na verdade um dos quartos da casa que improvisei para minhas produções. Foi de caso pensado, lá havia velas, um imenso sofá e a velha radiola. Acendi as velas, apaguei as luzes, coloquei a trilha de piano do velho filme que assistimos tantas vezes juntos e puxei da cômoda, que ficava à esquerda da janela, vinho e duas taças. Tudo tentativa de receber o anel. Cenário de acordo.
Nos sentamos e o achei um pouco incomodado. Decerto era nervosismo. Apesar de tantos anos juntos, nunca havíamos falado sobre assuntos mais sérios, sobre casamento e essas coisas. Ao contrário, formávamos um par de ocasião. Cada um dono da própria vida, sem partilha, sem compromisso, sem cobranças. Sabia que Otávio, vez ou outra, saía com outras mulheres, seus sumiços de semanas me revelavam que estava entregue à outra cama. Não me importava porque o sabia meu cúmplice, dentro de nossas liberdades vivíamos toda a intensidade do que tínhamos. Era assim a nossa vida: uma porta aberta para quem quisesse entrar e sair. Espécie de corda bamba sem rede, um arriscar-se constante que trazia medo e excitação.
Mas de repente a ideia do anel, da vontade dele de estar comigo em outros termos, remexeu minhas certezas.
A noite passou por nós e eu já estava de frente pro cavalete a pincelar, mais uma vez, seus contornos em tela. Nunca consegui desenhar o rosto de Otávio. Nos meus quadros ele estava sempre de costas, de perfil, com luz que impedia seus traços. Ele reclamou qualquer coisa a esse respeito e me apressei em chegar ao final do rascunho. Surpresa, a tela se formou com um homem com rosto indefinido que segurava na mão direita um anel brilhante, um anel de promessas, um anel de pedidos.
Otávio caminhou até mim, deu a volta pelas tintas apoiando-se em meus ombros e fazendo movimento em meu xale como que me despindo. Beijou minha nuca e no caminho à minha boca, enquanto me virava para ele, foi que deu de cara com o quadro. Pude ver seus olhos arregalados que refletiam as cores do dia que começava lá fora e denunciavam a surpresa, o espanto, o horror da minha tela.
Congelado entre mim e o quadro, entre a vida e a obra, Otávio se ajoelhou. Suas mãos seguravam as minhas com tanta força que seu suor passou a ser o meu. As duas rótulas coladas no chão, a cabeça baixa, a voz trêmula. Ele ergueu os olhos que boiavam em suas salmouras de angústia e balançou a cabeça, entre desespero e pedido de perdão: “o anel não é seu”.

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