Colunista
Ana Figueiredo

11.07.13
Boa noite amor

Coçou a careca sardenta e virou, ouvindo o ronco assoviado ao seu lado. Eram nesses detestáveis momentos em que começava a ver tudo, quando era obrigado a ficar sozinho consigo mesmo e não podia fugir para nada nem ninguém. Fechava os olhos e a escuridão ia devorando seus sonhos um a um. Não, não era medo, era algo maior, alguma besta arredia com a qual ele lutava nas noites de frio, essa besta melancólica era sua melhor amiga. Um bicho louco que pede por sangue, e que faz a dor da carne ser menor que a dor da alma, a dor do mundo e a dor da vida. Seu monstro de estimação, aquela pequenina caixa de pandora que guardava entre o estômago e o coração, cheia de demônios que reviravam suas entranhas e suas verdades, vermes sádicos que corriam pelos cantos, rindo histericamente da podridão causada. Uma besta, que não se vence, após a luta incansável, você a abraça, ajoelhado você a recebe de braços abertos. Uma violenta golfada da mais estranha paz, que diferença faz um beijo a mais no pesadelo que sempre volta?

E então abria os olhos, o quarto o encarava de volta, a mobília lhe perguntava “o que que há?” Abriu mão de tanto para poder se libertar e no fim continuava preso. Tinha construído em si mesmo uma jaula, feita de barras deformadas e tomadas pela ferrugem, e mesmo assim, indestrutíveis. Enfrentara com coragem tantos olhares discriminatórios, maldosos e infelizes, mas não podia encarar o velho rosto no espelho. Por trás das rugas que contornavam os olhos fundos ele escondia algo que temia ver.

Definhava, dia após dia ele se perdia um pouco mais. Nos objetos, nos sorrisos, nos abraços e nos insultos. Era tudo em vão, era insensível aos pequenos apelos do mundo.  E mesmo assim, cheio de sensibilidades disfarçadas, transbordava incógnitas gentis, mas nos lábios cansados as palavras se banhavam em ácido e saía apenas desprezo. Era cheio de sentimentos sombrios e dissimulados. E o que é que faltava?

Alisou a camiseta azul, como se estivesse tentando arrumar os próprios pensamentos, e virou-se para olhar o companheiro, ele dormia calmo. A barba por fazer se misturava ao branco dos cabelos, e o bigode hirsuto dançava no vai e vem do respirar. Dormia com o peito cheio de fiapos grisalhos à mostra. Como se a vida fosse assim, pra se viver de peito aberto, sem temores, sem escudos. Admirava isso nele, sempre admirou, desde a primeira vez em que se encontraram em um protesto qualquer, tantos e tantos anos atrás. Aqueles jovens que iam mudar o mundo tiveram que mudar a si mesmos.

Não sabia que pedaço de si tinha sido roubado ou se foram as muitas doses de realidade, de falta da fé, desespero e medo que foram o enxotando de si mesmo. Foram embora a coragem e a esperança.

Fixou os olhos no parceiro, no velho amigo, no amante. Não lhe faltava amor.

Vai ver não faltava nada, além da vontade de viver.

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