Colunista
Armando de Souza Santana Junior

26.06.12
O Engraxate e Sarita Montiel

Era um dia muito frio no final do inverno de 2002 e eu acabara de sair do escritório de um amigo em um prédio nas cercanias da Praça Osório. Estava vestido com um terno e um longo sobretudo. Olhei para os meus sapatos e como sempre, os vi foscos e maltratados. Lembrei que ali naquela praça funcionava a famosa e tradicional Boca do Brilho, um lugar construído pela Prefeitura para abrigar os engraxates curitibanos. Meu Deus! Como esqueço dos sapatos, pensei. Olhei para o relógio e refleti: Por que não? Entrei na Boca e sentei na primeira poltrona vazia e fui logo puxando um jornal qualquer na lateral do assento. O engraxate perguntou se eu queria pintar ou só engraxar. Sem prestar atenção em nada, só respondi o necessário: Graxa, por favor! Imerso numa leitura banal qualquer do pasquim, fui surpreendido com o seguinte diálogo:

Engraxate: — Sarita Montiel... hem doutor? Quem diria...

Eu: — Como?

Engraxate: — O doutor não viu? Saiu no jornal, ela vai casar... Ela trabalhou em “Vera Cruz”, que filme...

Eu: — Ah! Sim... a Sara Montiel, claro... vai casar.

Engraxate: — Pois é doutor, vai casar mais uma vez aos 74 anos... e como era linda...lembra?

Eu (surpreso!): — Você viu “Vera Cruz”?

Engraxate: — Claro... que duelo hem doutor?... histórico.

Eu: — É... lembro que o Gary Cooper morria no final.

Engraxate: — Não doutor, foi o Burt Lancaster. A arma dele estava sem bala... de propósito.

Eu: — Não foi o Gary? Olha lá hem?

Engraxate: — Não doutor, foi o Burt mesmo.

Eu: — Tem certeza?

Engraxate: — Claro doutor... ele era o melhor, mas não queria matar o Gary.

Eu: — Ah! Agora lembro... eu era garoto... é... “Vera Cruz”, um clássico. Preto e branco...

Engraxate: — Não doutor, colorido. Já era colorido, mas o senhor tem razão, é um clássico.

Eu: — Puxa! Só lembro do duelo...

Engraxate: — Ah! O doutor gosta de cinema! Lembra do “O homem que matou o facínora”?

Eu: — Claro que lembro...

Engraxate: — Pois é... lembra quem matava o facínora, doutor?

Perdido em lembranças há muito esquecidas falei calmamente: — O James Stewart... não?

Engraxate: — Acertou pela metade doutor, ele apenas pensou que matou... quem matou de verdade foi o John Wayne, lembra?

Eu: — Quanto é o serviço?

Engraxate: — Só R$ 5,00, doutor.

Eu: — Tome R$ 15,00. Dez é pela aula...

Olhei fixamente aquele homem humilde, roupas rotas, olhos expressivos, rosto sofrido mas afável, mãos enegrecidas pelo uso da graxa e tive a única reação que podia naquele momento: Parabéns meu amigo! Você tem uma grande memória e é um grande conhecedor de cinema.

Ele abriu um sorriso enorme e feliz e mostrando quase todos os dentes corroídos pelo maltratrato e cheio de orgulho respondeu:- Que nada doutor! Adoro cinema e é pena que esteja muito caro hoje em dia, por isso não vou mais. Mas aqui entre nós doutor, eu era louco mesmo era pela Sarita Montiel. E não é que a danada vai se casar de novo?

Fui embora ainda ouvindo a gargalhada daquele engraxate e nunca mais eu o vi de novo, mas também nunca mais esqueci a sua história.

 

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