Colunista
Armando de Souza Santana Junior

10.08.15
Um filme além da arte
Foto: Divulgação

Curitiba, 1982. Estou em frente ao Cine Astor na Rua Voluntários da Pátria - nessa época o cinema de rua ainda existia - olho no cartaz e vejo o anúncio: Blade Runner, o Caçador de Andróides – ficção. Verifico a ficha técnica e vejo que é de Ridley Scott com quem tive um magnífico encontro em Alien, o Oitavo Passageiro em 1979. Sou um aficionado por cinema. Gosto de detalhes e 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick nunca me saiu da memória, muito menos Eyes Wide Shut (De olhos bem fechados).
Los Angeles, 2019. É noite e grandes explosões sobre longas chaminés ganham os céus da mega cidade. Um olho azul refletindo a chama toma conta da tela. Ele, simbolizando a janela da alma estará presente em toda a história através do Teste VK. Um prédio imenso em forma de pirâmide é aproximado pela câmera e a música suave de Vangelis toma conta do ambiente. Sinto-me como se estivesse numa certa casa de opium na Londres vitoriana.
Enigmático e visualmente complexo, Blade Runner é um dos mais criativos e influentes filmes de ficção científica de todos os tempos. Tornou-se um cult clássico e duradouro.  Mas esse filme enigmático e cativante foi originalmente um fracasso de bilheteria e recebeu críticas negativas que o chamaram de confuso e desconcertante. A densa trama intrigante e detalhada do filme é apoiada por uma hipnotizante e melancólica trilha sonora musical do compositor grego Vangelis - imerecidamente esquecido para uma indicação ao Oscar. Seu visual revolucionário, sua locação arquitetônica inédita, sua atmosfera noir, seu clima poluído e chuvoso e mesmo sua desesperança na humanidade. Só por isso Blade Runner já pode ser tido como uma rara peça de arte.
Estilisticamente, o filme nos prende com fantásticos enquadramentos, imaginativos efeitos visuais de uma Los Angeles futurista de design concebido por Syd Mead, claramente influenciado pela visão de Fritz Lang em Metropolis (1927). Mead também foi desenhista de produção para o mesmo ano do visualmente pioneiro TRON (1982) e se uniu com o famoso futurista ilustrador francês Jean “Moebius” Giraud. Blade Runner tem uma vista aérea da paisagem urbana noturna, composta por arranha-céus que ainda sobraram do século 20. Uma mídia gigante contendo a imagem de uma gueixa sorrindo e orientais a pé ou de bicicletas trafegando incessantemente por ruas soturnas, faz crer que a cidade é uma mistura de Hong Kong, Tóquio e Nova York. Os prédios contêm uma publicidade eletrônica durante todo o filme e curiosamente apresenta patrocinadores da época e que hoje não mais existem como Atari e Pan-Am. A vida na Terra é muito difícil com a escassez de recursos naturais, de modo que os dirigíveis promovem as virtudes das colônias fora do planeta. Em contraposto, são mostrados prédios góticos magníficos, praticamente abandonados.
Mudanças climáticas trazem uma incessante chuva ácida, neblina e nevoeiro. O neon ilumina as ruas do centro povoadas pela escória da sociedade, uma variedade de asiáticos, gangues latinas e punks carregando guarda-chuvas de alças brilhantes. É nesse cenário que Rick Deckard (Harrison Ford) é o nosso Blade Runner, um ex-policial especializado em caçar replicantes (andróides revoltados), vestido como um detetive dos anos cinquenta e que encosta-se a uma vitrine que mostra aparelhos antigos de televisão com péssima recepção. Um contraste violento com toda a tecnologia existente. Aliás, o filme tem essa característica de mostrar que em 2019 a população convive apegada ao antigo, daí a canção One More Kiss, Dear composta por Vangelis especialmente para o filme, como se fosse dos anos 1930. Um primor!
Posso então dizer que naquele dia em 1982 descobri que um filme poderia ir além da arte, poderia também mudar uma vida. Blade Runner, infelizmente, ganhou apenas dois Oscars, o de melhores efeitos visuais e melhor direção de arte. Sorte que o tempo lhe fez justiça, o filme é além de cult, uma obrigatoriedade para quem gosta de cinema.

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