Colunista
Armando de Souza Santana Junior

18.05.12
Dez anos de solidão

Entre as minhas miríades lembranças, aquela casa é uma em especial. Era um sobrado de esquina com uma ampla área em cima e embaixo todo avarandado. Eu o adquirira na primavera de 1997 e o transformara num lugar muito aprazível.  O sol do Sul o abraçava durante todos os dias daqueles inesquecíveis verões setentrionais em que nos deliciávamos com longos almoços à base de ostras e caranguejos regados a vinhos brancos e espumantes . Depois nos embalávamos nas redes armadas ao beijo das brisas que vinham do mar para reparar o sono que nos aconchegava. Que momentos!

No inverno o lugar era um deserto, mas mesmo assim costumávamos caminhar pelas areias da praia devidamente agasalhados para ver o mar revolto e apreciar o voo dos albatrozes que dava nome ao lugar. Às vezes, a noite trazia grandes chuvas tempestivas e ventanias soltas uivando por entre as frestas. Aquilo de alguma forma mexia com os meus sentimentos, mas era o que de mais próximo eu chegava perto da solidão. Nos dias frios e escuros daquela estação, os peixes e camarões adquiridos dos pescadores do lugarejo eram transformados em borbulhantes caldeiradas que aqueciam nossos corpos e revigoravam nosso otimismo no futuro.

Vivíamos em uma pequena comunidade familiar, e naquele pequeno balneário tivemos a sorte de nos avizinhar de queridos amigos que possuíam também uma casa muito próxima à nossa, entrelaçando nossa convivência com jantares e papos descompromissados que avançavam madrugada adentro enquanto muitos já dormiam, falando de amenidades e dando boas gargalhadas. Eu costumava degustar um charuto antes de dormir e olhando para aquele céu estrelado, procurava identificar as constelações que conhecia desde criança ensinadas por meu pai. O som do mar quebrando na praia se fazia mais forte no silêncio da noite e eu só costumava adormecer com aquela “música” quando não mais aguentava manter os olhos abertos. Queria que aqueles dias e noites nunca tivessem fim.

Lembro que na nossa rua havia um sujeito de bigode que morava em frente e aparentava ter a minha idade. Não sei o porquê, mas o achei muito parecido com o Jânio Quadros. Soube depois, que após sua separação passara a viver ali sozinho, convivendo com pescadores e nativos. Da varanda superior eu o observava diariamente fazendo sua própria comida. Aquela solidão me perturbava. Na outra esquina funcionava um misto de boteco e mercearia cujo proprietário era conhecido apenas como Zé, um “quebra-galho” do lugar que nas horas ociosas cuidava e limpava algumas casas de veraneio do lugarejo. Juntamente com a nossa caseira e seu sobrinho magriço, eram os únicos personagens locais que convivíamos.

Pois foi nessa época que comecei a ler Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Talvez o livro mais extraordinário que li. Tive uma companheira nessa epopeia, pois coincidentemente a cunhada de minha esposa, que sempre nos acompanhava com sua linda garotinha nesses felizes dias, também começara a ler a mesma obra. Freneticamente passamos a disputar o avanço da leitura, cada um com seu exemplar. A saga dos Buendía passou a fazer parte de nosso cotidiano e vivíamos às turras na interpretação dos personagens que surgiam a todo o momento em Macondo, a pequena comunidade fundada por José Arcádio, o patriarca, e sua prima Úrsula Iguaran, atemorizados pela lenda de que casamento entre parentes podia gerar filhos com rabo de porco.  Chegamos até mesmo a apostar quem terminaria a trama, rica em realismo fantástico, antes do outro. Lembro bem que o episódio da descoberta do gelo por Aureliano Buendía levado por seu pai José Arcádio  até o cigano que o trouxera, achando que era o maior diamante do mundo, ficou marcado em nossas memórias.

Ao final da história, pouco importava a aposta que fizéramos e minha concunhada, a quem, durante a leitura, carinhosamente apelidara de Remédios, a Bela e eu, estávamos fascinados. Achamos a história belíssima, e procuramos entender se Cem Anos de Solidão seguia os padrões de uma realidade mesmo que mágica ou se era uma história épica. Para mim, o que importou foi que o livro era rico em encontros e desencontros ocorridos nas vidas dos Buendía e eram mostrados por diversos anos, até que o último Buendía vivo conseguisse decifrar as escrituras que prediziam o futuro da família. Neste trajeto, havia uma mistura bem dosada de elementos, personagens e passagens, que incluíam um comboio carregado de cadáveres e uma população inteira que perdia a memória. Mostrava ainda mulheres que se trancavam por décadas numa casa escura e homens que arrastavam atrás de si um cortejo de borboletas amarelas. No fim, o tema central do livro é mesmo a solidão, pois parecia que todos os integrantes da família, das mais diversas gerações, estavam fadados a conviver com ela.

Após essa leitura, alguns anos se passaram naquela casa cuja comunidade passei a denominar particularmente como minha Macondo, já que a vida ali caminhava tal qual o destino dos Buendías. Minha parceira de leitura e aulas de xadrez teve novas filhas e atividades. As visitas rarearam cada vez mais e diante da necessidade profissional de meu cunhado mudaram-se posteriormente para outro Estado. Nossos últimos e raríssimos encontros aconteceram por acaso em Paris e no Rio de Janeiro, onde entre um café e um pastel de Belém comentamos outras obras e o que escrevemos em blogs sobre nossas experiências, sem, no entanto, comentarmos uma única frase sequer sobre aquela época em que dividimos Cem Anos de Solidão.

Assim é que um dia, por volta de 2001, fomos comunicados da morte súbita de nossa caseira, assumindo o seu encargo o seu sobrinho magrelo. No entanto em 2002, ao descer sozinho a serra para efetuar reparos necessários no sobrado, notei que a casa do “Jânio”, meu vizinho de frente, estava trancada, com muito mato em seu gramado e certo ar de abandono. Será que se cansara daquela vida solitária e voltara para Curitiba? Perquiri intimamente. Procurei então informações a respeito e obtive a triste notícia de seu também súbito falecimento. Ele aparecera no início da noite no boteco do Zé pedindo socorro, pois passava mal. Morreu ali mesmo, de enfarto, sozinho, sem filhos ou mulher que o amparasse naquele terrível momento de solidão. Assim me fora narrado pela mulher do Zé. Senti uma inexplicável tristeza e melancolicamente notei então que a aquela comunidade se transformara e o lugar perdera a magia de Macondo.

Nossa frequência, a partir de 2003, diminuiu consideravelmente. A vida mudava sempre. Meu filho chegara e o lugar, de fato, já não era mais o mesmo, pois até os jantares com os amigos rarearam. Em 2004, com o início do verão no Sul, retornamos. Estranhei que o boteco do Zé estivesse em reforma geral, sem nenhum morador por ali. Meu caseiro magricela, perguntado revelou que o “seu” Zé também tinha morrido tal qual o “Jânio”, de enfarto fulminante, e que a viúva chorosa, agora sozinha, vendera o lugar e fora embora sem revelar o seu destino. Então, olhei tudo em volta e vi que aquele lugarejo que apelidara de minha Macondo, encerrara sua história em minha vida e antes que eu tivesse que ser amarrado em uma árvore, tal qual José Arcádio Buendía, resolvi, em 2006, vender aquela casa de tão boas memórias, encerrando meu ciclo de dez anos de solidão.

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