Colunista
Ernani Buchmann

07.08.12
Futebol no deserto

Lembro-me ter sido convocado a uma reunião. O responsável foi, como sempre tinha sido e continuou sendo vida afora, Marcos Villanova, o Villa. O assunto versava sobre a composição de um time de futebol de salão, a ser composto por Chico Branco e Simão Pedro na zaga, João Alfredo Gonçalves na armação e ele, Villa, no ataque. Ocorria faltar um goleiro, função para a qual haviam pensado me convidar. Também não havia reservas – talvez houvesse, um zagueiro, se bem lembro, mas ele falhava muito, em todos os sentidos. Nosso banco era, portanto, um deserto.

O nome do time, verdadeiro terror futuro do futebol de salão curitibano, seria Gotham City. As camisetas, da marca Hering, teriam o vermelho como única cor. Pensei que a cor poderia ser preta, já que o nome fazia referência ao Batman, mas fui aconselhado a desistir da empreitada. A cor vermelha tinha por motivo o sangue que deitaríamos nas camisas. Pelo menos não seria homenagem às bermudas para lá de suspeitas usadas pelo Robin, o que já era um avanço.

O primeiro problema a resolver, posto que aceitei a incumbência, foi prover o goleiro de uniforme apropriado. Não havia camisa vermelha de mangas compridas. Chico Branco, assaz gentil, ofereceu-me a camiseta adequada, cuja usava como pijama, no inverno. Movidos pela esperança de que aquele ano não fizesse muito frio ou que sua mãe providenciasse outra indumentária invernal para o filho, pusemo-nos a campo. À quadra, digo melhor. Quadra dura.

Foram embates terríveis, encarniçados e sanguinolentos, os que travamos. No chão inóspito – parece-me que era concreto – do Centro Israelita impusemos derrota inesquecível aos hebraicos, única derrota sofrida por Israel no período compreendido entre as guerras dos Seis Dias e do Yon Kippur. O time deles trazia craques do porte de Marcelo Jugend, Nathan Kulish, Mendel Knopfholz e mais um exército arregimentado em todos os kibutzin existentes ao sul do Equador. Tendo em vista a deficiência no item kibutz do lado de baixo do Equador, convocaram jogadores da banda de cima, também. A vitória se deu por placar folgado, de forma a não deixar dúvidas. Nosso banco de reservas não precisou entrar em ação, mesmo porque estava desabitado como o Saara. O jogo, que passou à História como a Batalha do Deserto, me deixou diversas cicatrizes nos joelhos e cotovelos.

Algumas semanas depois, nosso atacante-empresário, responsável pelo calendário, conseguiu agendar jogo contra o time que todos temíamos, o Lacoste. Ao contrário do nosso esquadrão, legítimo representante da classe média curitibana, o Lacoste era time de ricos. Todos tinham automóveis, enquanto nós preferíamos o transporte público, às vezes substituído por prosaica carona.

O Lacoste e seus playboys tinham por uniforme, lógico, camisas Lacoste, de qualquer cor. Eles podiam entrar em quadra com cinco cores diferentes, estava valendo. Uma inovação, a qual a Fifa jamais considerou. Deveria: o futebol ficaria parecido com um desfile de carnaval, os costureiros enlouquecidos de prazer. Para nós, uma camisa daquelas equivalia a um ano inteiro de salário do respectivo pai.

O Lacoste tinha como goleiro o grande Galocha, campeão pelo Curitibano sei lá quantas vezes. Na zaga jogava Sedu Branco, espécie de Guiñazu daquele tempo. Na frente, os diabólicos gêmeos Dalton e Ronaldo Silva.
Nossas desvantagens eram todas. O jogo seria realizado na Sociedade Hípica, reduto deles. Em quadra de areia, piso para o qual não estávamos adaptados.

Embaixo das traves, trabalhei como um mouro, no primeiro tempo. No segundo, como dois mouros. Defendi até pensamento dos almofadinhas, exceção feita aos dois gols que não pude evitar.
Assim terminou aquele jogo, depois de umas oito horas de luta – é o que minha memória teima em garantir –, tido na História como a Batalha do Deserto II – Guerra na Areia.


O que ainda me emociona ao contar tal epopeia foi a atitude dos gothanianos. Ao fim do combate, o time, em caravana – sim, estávamos no deserto – veio em minha direção. Abraçaram-me, agradecidos. O nosso capitão, declarou, então, que eu fazia jus a um motorrádio moral. O motorrádio, prêmio oferecido durante tantas décadas ao melhor em campo, era meu.

Não pedi nem um vale, mero papel que comprovasse a homenagem. Pouco importava: aquele prêmio imaginário foi o maior troféu que já me permiti receber.










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