Colunista
Fábio Campana

05.12.12
Memória da Memória de um sargento de milícias

Meus professores do ginásio não eram contemporâneos de seus alunos. Minha professora de língua e literatura portuguesa, Dona Josefina Marés, tinha a cabeça e os sentimentos cravados nos fins do século XVIII.

Solteira em meia-idade, cabelos pintados com uma tintura da época que os deixavam mais negros que a asa da graúna, era uma mulher feia, que não despertava apetites.  Pobre Josefina. Delirava com os amores impossíveis e recatados das tramas açucaradas da Madame Delly. Josefina era gordota, buço acentuado, lembrava uma cachopa portuguesa. Difícil conseguir marido.

Da literatura brasileira que tinha responsabilidade de nos ensinar, só José de Alencar e a paisagem literária feérica e irreal, as selvas tão luxuosas que mais pareciam cenários de operetas para personagens de irrealidade quase grotesca de uma Idade Média que não tivemos. Peri, Iracema, Ceci. Ah, e as poesias de cunho patriótico. Recitava Gonçalves Dias em trágica interpretação. A voz tremulante, as ênfases que nos faziam rir. A pior maneira de conhecer Gonçalves.

Nunca nos apresentou Capitu, que condenou aos infernos porque teria traído Bentinho. De Machado de Assis, só a primeira fase, romântica. A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia. Nada do que o mestre escreveu depois de conhecer a fogosa portuguesa Carolina Augusta. Ficamos sem Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

E tinha um livro que ela retirou da biblioteca da escola e nos furtou o prazer da leitura. Memórias de um Sargento de Milícias. Em primeiro lugar, pela linguagem, a língua tal como é falada entre nós. A literatura não seria uma imposição desconfortável. Imaginem, Leonardo Pataca a beliscar a saloia infiel. Nem herói, nem vilão. Pataca foi pai, foi traído, reincidiu. Morreu. Para Dona Josefina, uma vida imoral.

E o padrinho que se apropriou de herança alheia? Apesar de ladrão e péssimo caráter, quis fazer do afilhado um padre e sacrificou-se por ele. E a comadre. Nem nome tem. E é um dos tipos femininos mais ricos de nossa literatura. Segundo Almeida, mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e finória até outro. Em parte, a nossa Josefina.

Manuel Antonio de Almeida introduziu o homem na nossa literatura. Foi quem pela primeira vez escreveu como se falava nas ruas em sua época. Lá estão nossos escravos, nossos quiosques, nossos postes de iluminação a óleo de peixe, o pelourinho, a casa da cadeia pública, as mulheres de mantilha, as procissões, a via-sacra, os fogos no Campo dos Ciganos. Debret é o melhor ilustrador para o romance de Almeida. 

Nosso bravo Almeida foi um homem generoso. Morreu moço, aos 31 anos, num naufrágio perto do litoral do Rio de Janeiro. Deu outra contribuição fundamental à literatura brasileira. Foi amigo e protetor de Machado. Era médico, exerceu o cargo de diretor da Imprensa Nacional e ali arranjou o primeiro emprego, de tipógrafo, para o futuro autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. E aproximou-o de uma literatura que Machado não conhecia. Apresentou-o aos ingleses, foi uma das influências capitais de nosso maior escritor.

Pois, pois, Dona Josefina morreu sem marido, provavelmente virgem, sem ter experimentado os prazeres. Melhor sorte tivemos nós, que descobrimos a melhor literatura brasileira mais tarde. Para ser verdadeiro, nem todos. Muitos ficaram com a cabeça na época da mentalidade de Dona Josefina, embora acreditem que alcançaram a modernidade através da televisão, da telefonia e da internet, instrumentos muito apropriados para desenvolver asnos.

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