“Estar ou não estar contigo é a medida do meu tempo.”
(Jorge Luis Borges)
Subiu com a lentidão do rancor, o ranger da madeira e o cheiro de mofo combinavam com o papel de parede descorado, uma quantidade de tons delicados e belos que o tempo fundiu em amarelo como um sorriso velho e carente de afagos. Nada era estranho, reminiscências precisas: as melhores horas vadias ao lado de Sofia, o tempo possível da ilusão, única a concentrar toda sua ternura, denso prazer jamais sentindo com outra mulher. Encontros furtivos e clandestinos, misto de medo e aventura, ao final da tarde. Quando o sol se retirava do palco e dava lugar às estrelas, ele esperava inquieto como um menino que antecipa o sabor da colheita, então um cheiro de fruta madura, que enchia o ar de perfume, que entrava pelo nariz, transbordava pela boca e corria pelas veias. Ela surgia da penumbra, alta, forte, morena, olhos escuros e grandes, carregados de malícia, trazia os cabelos presos, metida em um vestido que mal continha peitos redondos e bicudos e as coxas torneadas, risonha, feliz da vida e cheia de entusiasmo, a fala delicada o fazia latejar, o sorriso lhe enchia o coração.
O porteiro olhava-os com conivente compreensão, subiam arrastados pelo prazer, mergulhavam nos lençóis com ar fresco e lavado a rolar na cama, soltos e tensos. Beijava, apertava-a contra o corpo, mordia-lhe a boca, ela não apresentava a mais débil resistência, era quente e branda, calor doce e macio, aí vinham os gemidos, crescendo de intensidade até o desespero do estremecimento, que cediam ao silêncio que os envolvia depois do amor, os cercava de cumplicidade quando ela se debruçava sobre os seus olhos e ele exausto a contemplava como um menino, saciado como um rei. Ela tinha o desejo de sair dali e dar passos largos à felicidade, pagaria qualquer preço para viver aquele amor. Desilusão das promessas indecisas, da aceitação sem garantias e sem provas de um destino, opróbrio de ser a outra, separação.
Despiu-se mansamente como a chegada do amor e diante do espelho cruel da verdade viu a nudez senil que o envergonhava.Ontem, o desejo era alegria, hoje, maldição, murchara no corpo o antigo vigor, por isso as desproporções e desconfortos do quarto não lhe oprimiam as recordações, exilado em pensamentos não dava qualquer importância aos desarranjos daquele tugúrio, a certeza física de não poder preencher os vazios do tempo não ofuscava os devaneios da imaginação, tão impressivos que os trazia na retina, de segundo em segundo já se iam quarenta anos, tinha de cor as horas que viveram juntos naquele quarto. Dominado por uma congestão da imaginação, respirou fundo, cerrou os olhos e fez recordar aquele lugar com seu charme profundo e original. Afinal essas memórias eram o seu único tesouro. Em silêncio entregou-se submissamente às emoções e sensações desencadeadas pelas lembranças. Aninhado na cama, sentiu o arrepio da carícia, que se perpetuou no tempo, como um poema. A esperança apesar de desiludida dava o ar da graça.
Desceu rápido como a paixão, “lavado em lágrimas, atravessou a rua na contramão na espera que algum desavisado lhe trespassasse o corpo e libertasse a alma. Deambulou pelo passeio úmido, tonto, enjoado, sem rumo, sabia que após Sofia sua vida tinha sido uma lenta, teimosa e insone preparação para a morte. Quando dominou a emoção, abriu a porta de casa, foi sacudido pela mesma voz rachada e ácida e aquele olhar vidrado a medi-lo com desprezo ameaçador. Impotente, pensou: megera desgraçada! Quebrado o encanto de ontem voltava à normalidade de hoje, sentia-se um desterrado entre os inimigos”. Há anos vivia sem alegria, o sofrimento tomava conta do corpo todo, e não cabia mais lá. O amor cortava-lhe a alma, corte de navalha na veia da tristeza sincera, funda e contida. A vida tinha sua graça no acaso, nos absurdos de toda natureza que o cercava e suportar resignado o monótono romance de sofrimentos não se comparava a viver sem ela. Viver sem ela sempre foi dor, desejo vivo de ser ontem e a dolorosa realidade de quem sabe que “não há solidão onde caiba esperança”.