Colunista
Antonio Augusto Figueiredo Basto

02.09.13
Memórias da titia

— Levanta o vestido Aurora?

— Moleque desavergonhado, vai ter com o diabo, indecente!

— Deixa eu ver, só um pouquinho, prometo que não coloco a mão.

— Descarado, vai pro diabo que te carregue, safado, corre daqui, vou chamar seu avô, fedelho.

A mera lembrança do avô, um “Jeová de Botas”, me fazia levantar as calças como o diabo coça o rabo e me embrenhar no mato em busca de um refúgio onde pudesse abrandar aquela tentação de bicho solitário.

Com 15 anos, não tinha ido às mulheres.

E num fim de tarde quente e impregnado pelo cheiro da chuva titia chegou.

Na varanda, a sós comigo, tinha os olhos perdidos na paisagem emoldurada pelos postes de madeira que pareciam anunciar um calvário, quando ela chegou, cheia de sol e garbo, com um sorriso lindo e uma ternura de fada que tocava a alma e doía no corpo, roubou a paisagem e meu desejo.

Alice tinha biografia de heroína. Conseguiu ser aceita na faculdade de medicina onde conheceu Lucio Cinfuegos, estudante de direito e membro do partido comunista no qual ela também ingressou, apaixonados acreditavam que colocariam um pouco de ordem no caos do mundo. Lucio, calejado aventureiro, foi combater na Espanha e deitou nos campos onde Lorca também morreu. Alice, grávida, voltou para o Brasil a enfrentar sozinha e mulher a desumanidade de uma sociedade patriarcal empenhada em reprimir qualquer desafio às convenções da época. Contou com a generosidade dos meus avós, pessoas liberais, conviventes e absolutamente generosas.

Naquele verão de 1948, o sol foi ofuscado pelo brilho dos seus imensos e turbulentos olhos negros, tão fortes quanto sua personalidade invulgar que resplandecia quando discutia literatura com meu avô, obrigando-o quase sempre a depor armas diante um sorriso maroto de quem antevê o resultado do confronto. Alice era uma delícia, peitos insurgentes e coxas a empurrar o vestido, tinha vontade de me atirar a ela. Às vezes, tentava fitá-la com firmeza na busca da imponderável atenção dos seus olhos, mas logo baixava os olhos temendo desvelar minha intimidade, vivia num limbo de incertezas. Sofria na alma a devastação da angústia e tinha o corpo roído pelo desejo. Ela ouvia com candura de quem embala uma criança antes de adormecer as minhas bravatas de menino, não aliviava minha aflição, um fedelho brigando contra o desejo inconfesso, luta desigual para um homem, impossível para um menino. O parentesco não reprimia a tentação destrutiva, sentia-me um vagabundo magnetizado por aquela mulher, abandonei as saias de Aurora. Exorcizado o demônio do escrúpulo, acendia-lhe uma vela em meu altar de adorações. Quanto mais inacessível, mais desespero e desejo. Tinha que recorrer aos ensinamentos do Amaro, encarregado da fazenda do meu avô, homem sábio que cultivava sensibilidade como a gentileza que semeava a terra e me ensinou como resolver sozinho as coisas de homem.

Meu quarto era no fim do corredor e o dela no sentido oposto, ao deitar meu corpo tremia sabendo que aquela mulher estava tão próxima, mas a ideia de atravessar o corredor trazia um pânico estúpido que me fazia enrodilhar os sentimentos e o corpo. Não suportando a espera das horas mortas, tomei coragem e, numa noite que o brilho da lua tornava pálido o casario, em pés de desajeitado bailarino cruzei o “Rubicão” do meu desejo, lancei a sorte e alma na escuridão. Gemebundo e sentimental encostado à porta de Alice, sem saber o que fazer ou dizer, o coração explodindo no peito aberto ao insólito capricho do corpo e da alma ansiando por um corpo feminino, nu, sem disfarces, sem pecados, o desejo indiscreto a escapar do pijama, quase fui flagrado quando meu avô, premido pelas necessidades fisiológicas, levantou. Aos tropeções e topadas, me escondi em baixo de um oratório: — Valei-me Nossa Senhora, se me safo dessa, outra não faço, tomo jeito. Promessa não cumprida, porém perdoada.

Amaro me levou às putas. A vida trouxe mulheres, paixões e o amor. No sigilo de meu coração ficou a memória agradecida de Alice e daquele tempo cheio de luz e cor, e a certeza de que “as coisas não são como as vemos, mas como as recordamos”.

Tags:









TAMBÉM NOS ENCONTRAMOS AQUI: