Colunista
Antonio Augusto Figueiredo Basto

10.10.13
O inominado

Permita-me não revelar meu nome, minha identidade é irrelevante e meus prazeres exigem discrição, não suporto curiosos. Além disso, a preservação de meus interesses e o instinto natural de conservação determinam cautela: a infâmia que cobre meus atos poderia trazer problemas e desagradáveis consequências ao indesejado investigador. Não me tomem por covarde, um homem só sabe se tem coragem quando é testado verdadeiramente, garanto-lhe que romper os diques da sanidade contida e deixar extravasar os apetites dissolutos e violentos que se ocultam dentro da alma é uma prova de coragem. Mas a coragem sem a prudência é inútil, por isso sempre tomei cuidado com o que digo e faço, nunca exagerei no culto à verdade, descer dentro de si mesmo exige uma força de ânimo e caráter mais que humana. “O homem não é um, mas verdadeiramente dois”, contraditórios e independentes, unidos pela solidão e sofrimento. 

Entre os vícios que cultivo do berço não está o da hipocrisia, para um homem habituado a dizer sempre a verdade o mundo pode ser um lugar desagradável, a impopularidade nesse aspecto representa um risco de vida. Nunca acreditei em virtudes, cultivar uma virtude é a obra de uma vida, várias virtudes uma completa insanidade. “Sou um homem de posses, bom gosto e temperamento imaginativo, nunca tive dificuldades com meus prazeres e não houve obstáculo físico ou moral para minhas aventuras e fornicações. Caminho solitário no mundo carregando um caráter bambo, uma inteligência prodigiosa e uma timidez congênita. Prematuramente fui aprisionado por uma força natural e incontida que revelou que minha alma era perversa e embora não soubesse os motivos e nem quisesse dimensionar as consequências travei uma guerra interior contra aquela força misteriosa e inquietadora, que a razão reprovava, mas o instinto aplaudia. Venceu o instinto, rompi o tedioso monólogo com Deus e da perversidade trivial que mora no coração de todos os homens passei a “excessos maiores que os de um Nero.”

Dos incautos que acreditam que “na lei de Deus os crimes não prescrevem”, recuso de bom grado a companhia ou qualquer indulgência. Cruzarei o vale sombrio e descerei ao inferno como caminhei pela vida: solitário e condenado à pavorosa ruína de minhas paixões ingovernáveis. Antes de iniciar, advirto que meu relato causará horror e repúdio em muitos, estarrecimento e curiosidade em outros tantos, mas sei que dentro de alguns corações onde a virtude desceu aos mais baixos degraus haverá arroubos de felicidade incontida.

EM UMA NOITE QUALQUER

Ela se disse cansada de ajoelhar implorando perdão sem saber os motivos e que o duende que dançava dentro do seu ventre estava sempre pronto para os encantos de uma travessura imprudente. Senhora de si, dotada de uma eloquência cativante, sedenta de ternura e sem esperanças, tinha amantes como calendários de folhas soltas. Quando tentei falar, colocou suavemente o dedo indicador sobre os meus lábios selando minha boca, mostrando que pouco importava a autenticidade das minhas palavras, ela não queria verdades, mas prazer e diversão. Não perguntou meu nome e eu também não falei. Para ela seria melhor ter me perdido que me encontrado.

Na penumbra, sentia a segurança de um sonâmbulo diante dos afagos e carícias daquela fêmea que se contorcia sobre meu corpo, que não vibrava no diapasão do desejo dela. Impotente e tomado por uma forte náusea mortífera, tentei afastá-la.

— Por acaso “você é um veado esnobe”, venha foder seu puto! 

Aos gritos que imploravam prazer sucederam o vão e histérico choro de amargo desamparo, a contorção se transformou em desespero, gemidos roucos eram os últimos sinais de vitalidade daquela mulher cujo pescoço eu apertava com vigor sentindo cada fibra daquele corpo vibrar em minhas mãos de alicate, perícia que sempre esteve às ordens do meu sinistro desejo. Com urina promíscua celebrei o macabro ritual, depois fui ao banheiro limpar a imundice do prazer, não havia qualquer resquício de remorso. Sentei pesadamente na cama, indiferente ao padecimento, observei a mulher que jazia no centro da cama, monolítica e perfeitamente arrumada, braços cuidadosamente postos ao lado, pernas encostadas e os cabelos cor de mel alinhados e penteados, olhos arregalados, que não demonstravam medo, mas surpresa.

— Me sinto justificado, não existe justiça diante da morte, todos estão condenados a um destino desgraçado e irreversível que não pode ser suavizado pela vã presunção de que Deus haverá de acolher-nos em seu reino. Sofrimentos existem e não existem culpados, tudo é permitido nessa terra, fome, miséria, morte e morte de crianças, por isso jamais me permiti ao exercício da bondade, sempre fui coerente com minha natureza, recuso a remição divina, mas não recuso minha humanidade.

Não sou o único, sou como muitos que devorando a carne e o sangue dos animais saciam seus apetites no grande banquete da vida, para eles a morte também vem antes do prazer. Prazer e dor foram gerados no mesmo útero.

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