Colunista
Luiz Geraldo Mazza

08.12.14
Subversos controversos e reversos, haja versos
Foto: Reprodução/site freeimages.com

A paranoia nos levava a transformar qualquer lugar num ‘’aparelho’’: lembro de um encontro com o compositor Zé Keti, em pleno fulgor do regime, tirando sarro da mobilização feminina e religiosa que deu o sinal para a ação dos militares em 1964. Toda gozação a posteriori, embora tenha função motivadora, para manter o time unido, tem eficácia limitada, mas no caso operava como uma ironia pelo fato de muitas das marchadeiras, aquela altura, já estarem fazendo uma revisão dos seus atos em função do que se dava na política e na economia.
“Você marchou pela democracia/ agora chia, agora chia”– algo mais ou menos assim como a nortear uma reversão, o que não viria tão cedo.
O voluntarismo estava em tudo e até nos versos de Geraldo Vandré no seu Pra não dizer que não falei de flores, o clássico “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. O fato é que não soubemos fazer a hora em 1964 e quem soube foi a arregimentação civil-militar, pois ao desafiarmos a direita para manifestações de rua com o comício das reformas da Central do Brasil com 350 mil pessoas jamais imaginaríamos o arrastão das marchadeiras em concentrações de 700 mil e até um milhão de pessoas nas capitais brasileiras, apoiadas por religiosos ianques como o padre Peyton e obviamente pela CIA, e para completar a frota americana nas costas de Pernambuco pronta a qualquer eventualidade.
Acusava-se Jango Goulart de montar uma república sindicalista, o que só veio de verdade e para valer com o lulopetismo e o aparelhamento inclusive das agências de regulamentação que se seguiram às privatizações de FHC.

A relíquia
Encontro na Boca Maldita o advogado Antonio Amaral, secretário muitos anos do Partido Comunista no Paraná, e ele me diz que o “capitão” desejava falar comigo. Imaginei que o Prestes estivesse pela cidade, mas não era, e sim o capitão Agliberto, acusado em 1935 de ter participado da arregimentação na área militar precursora da aeronáutica. Repliquei que o encontro se poderia dar em qualquer ponto da cidade, ao que Amaral, assustado, achava que não, como se o velho combatente vivesse em permanente esconderijo.
Lembro que numa esteada democrática (e isso é permanente no Brasil) fizemos uma arregimentação contra o aumento do transporte coletivo com estudantes e após o meu discurso ouvi uma crítica do Agliberto: você, disse ele, poderia mostrar a ligação disso tudo com o imperialismo.
Das que permeiam ingenuidade e amor aos mínimos feitos, lembro de uma ida ao Seminário de Saletinos, todos com uma ânsia de participação que nascera com o papa João XXIII, mas que não continha ainda os elementos de doutrina e de filosofia da Teologia da Libertação de Leonardo e Clodovis Boff. Pelo fato de respondermos processo militar e de havermos sido atingidos pelo Ato Institucional éramos olhados como se um halo de luz nos aureolasse. De repente um seminarista com aquele tom ítalo-eclesiástico na fala me pede para ver uma relíquia que eles guardavam como um tesouro.
Imediatamente temi ver ossos de algum religioso, algo do gênero, a roupa de um beato, sangue na hóstia. O estudioso, emocionado, me mostrou um objeto de madeira com veludo protetor no interior e me disse “É a orelha do reitor!”. Um fragmento da estátua derrubada em 1968 e compondo a orelha da escultura do professor Flávio Suplicy de Lacerda num choque entre estudantes e PM na Reitoria estava ali como um referencial da batalha, a iconografia da resistência, misto de impulso revolucionário e religioso, algo permanente no ambiente de grupos como os da Ação Popular. Não tinha o simbolismo do Doutor Zequinha, estilingue à mão, como estudante de Medicina, apontando para o cavaleiro da PM que avança em sua direção no cerco ao Centro Politécnico, foto de Edison Jansen que ganhou o prêmio Esso. Coisas que enriquecem o imaginário da política e a ilusão do repeteco do Velho Testamento entre Davi e Golias e que ficam para sempre. A orelha e a foto são do mesmo momento de 1968 que, segundo Zuenir Ventura, um ano que não terminou, o que também não passa de outra ilusão. São os versos controversos da subversão da qual vi uma espécie de ai-kai forçado e mal composto ‘’Ser sub vivo/ sub ser vivo?/ subversivo!’’. Não havia outra opção decente e de gente.

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