No Belém, que Dalton Trevisan diz ter visto em sua infância lambaris do rabo vermelho, já se fez batismo de religião até por causa do nome e da qualidade da água do passado. Nós o contemplávamos estático, águas barrentas, quando aprisionado pela barragem do Passeio Público e assim continuou por muitos anos até que Ney Braga devolveu-o ao canal original e abasteceu-o com águas de dois poços artesianos, o que não impediu com o tempo que viesse a ser tomado pelas algas que afinal apareceram também no Capivari da Usina Hidrelétrica e na do Iraí lá para as cabeceiras do Iguaçu.
O Passeio, como os demais parques de Curitiba, visou mais do que o lazer e também a regularização do curso d’água e ainda o combate à insalubridade. Nesses tempos os curitibanos dormiam com o coaxar dos sapos e de repente em função das obras de drenagem e da impermeabilização do solo pelo asfalto eles foram desaparecendo, embora durante um bom tempo avidamente caçados como os cães para estudantes de Medicina. Fala-se muito a propósito no “estouro” do ladrão do tanque São Lourenço, lá onde opera o Centro de Criatividade, e numa suposta “chuva” de peixes como traíra, carpas e bagres: meninos percorriam o canal do rio e os apanhavam em sacos.
Do voo ao zoo
Da cenografia do parque, mais do que aquele encerado simulando um avião e em que as pessoas punham a cabeça para serem fotografadas pelo lambe-lambe como se estivesse em pleno voo, mais do que a ilha da Ilusão em que Emiliano Perneta, que transitava do ciclo neoparnasiano ao simbolismo, foi coroado príncipe; mais do que a fase heroica das empregadinhas que namoravam soldados e muito mais ainda dos tempos do saudoso Restaurante Universitário e das sólidas árvores em que suicidas encontravam o fim depois de perderem o dinheiro da repartição na tavolagem do Cassino Ahu, conforme o relato das viúvas inconsoláveis, o que mais se impõe, bem acima do trotoir que fazia concorrência alegre e democrática aos bordéis, há o império do seu zoo.
Vamos a alguns feitos: o gorila vê a jaula entreaberta e se desloca ao Bar do Pasquale. No balcão dona Isaura e lá no bar um empertigado senhor que lê nada menos que o editorial do Estadão, caipirinha ao lado, e o símio bota o dedão no copo e repete o gesto ao assimilar a bebida adocicada. Isaura desmaia.
Há o sumiço de marmitas de trabalhadores da prefeitura no recinto, monta-se um rigoroso inquérito e se descobre que macacos prego, saltitando nos galhos, eram os autores do desvio e não foi preciso nenhum Joaquim Barbosa para julgá-los e encarcerá-los.
Do símio ao búfalo caminhante
De tudo o que os animais aprontaram (há também os que fustigaram os bichos como o atirador solitário que derrubava de uma janela com tiros de rifle as garças, atobás e outras aves migratórias e ainda o caso dos estudantes predadores que churrasquearam um javali) nada excede ao feito do búfalo, uma argola no focinho, e que sai da imersão no açude pela rampa e apareceu com seu negrume na antiga Rodoviária do Guadalupe e provocou pânico, as pessoas apavoradas subiam ao teto do terminal ou se protegiam na parte alta da igreja. Nesse momento pinta no local um bebum, jornal embaixo do braço, reconhece o bubalino e lhe dá uma jornalada na cabeça avisando que sabe onde é seu domicílio e o conduz, madrugada adentro, como um pastor contrito pela rua até o Passeio.
Giro esse caleidoscópio e vejo as delicadas gravuras em outdoor de Marcel Leite com um menino mijando laranjada, propaganda da Wimi, num oceano imaginário e ainda os garotos que se banhavam no tanque que aprisionava o Belém. Como o bebum tangendo o búfalo, tento inutilmente reordenar essas imagens e me diluo na apoteose de cromos do tempo perdido como na viagem mnemônica de Proust.