Colunista
Luiz Geraldo Mazza

17.12.12
Caleidoscópio do rio Belém

No Belém, que Dalton Trevisan diz ter visto em sua infância lambaris do rabo vermelho, já se fez batismo de religião até por causa do nome e da qualidade da água do passado. Nós o contemplávamos estático, águas barrentas, quando aprisionado pela barragem do Passeio Público e assim continuou por muitos anos até que Ney Braga devolveu-o ao canal original e abasteceu-o com águas de dois poços artesianos, o que não impediu com o tempo que viesse a ser tomado pelas algas que afinal apareceram também no Capivari da Usina Hidrelétrica e na do Iraí lá para as cabeceiras do Iguaçu.

O Passeio, como os demais parques de Curitiba, visou mais do que o lazer e também a regularização do curso d’água e ainda o combate à insalubridade. Nesses tempos os curitibanos dormiam com o coaxar dos sapos e de repente em função das obras de drenagem e da impermeabilização do solo pelo asfalto eles foram desaparecendo, embora durante um bom tempo avidamente caçados como os cães para estudantes de Medicina. Fala-se muito a propósito no “estouro” do ladrão do tanque São Lourenço, lá onde opera o Centro de Criatividade, e numa suposta “chuva” de peixes como traíra, carpas e bagres: meninos percorriam o canal do rio e os apanhavam em sacos.

Do voo ao zoo

Da cenografia do parque, mais do que aquele encerado simulando um avião e em que as pessoas punham a cabeça para serem fotografadas pelo lambe-lambe como se estivesse em pleno voo, mais do que a ilha da Ilusão em que Emiliano Perneta, que transitava do ciclo neoparnasiano ao simbolismo, foi coroado príncipe; mais do que a fase heroica das empregadinhas que namoravam soldados e muito mais ainda dos tempos do saudoso Restaurante Universitário e das sólidas árvores em que suicidas encontravam o fim depois de perderem o dinheiro da repartição na tavolagem do Cassino Ahu, conforme o relato das viúvas inconsoláveis, o que mais se impõe, bem acima do trotoir que fazia concorrência alegre e democrática aos bordéis, há o império do seu zoo.

Vamos a alguns feitos: o gorila vê a jaula entreaberta e se desloca ao Bar do Pasquale. No balcão dona Isaura e lá no bar um empertigado senhor que lê nada menos que o editorial do Estadão, caipirinha ao lado, e o símio bota o dedão no copo e repete o gesto ao assimilar a bebida adocicada. Isaura desmaia.

Há o sumiço de marmitas de trabalhadores da prefeitura no recinto, monta-se um rigoroso inquérito e se descobre que macacos prego, saltitando nos galhos, eram os autores do desvio e não foi preciso nenhum Joaquim Barbosa para julgá-los e encarcerá-los.

Do símio ao búfalo caminhante

De tudo o que os animais aprontaram (há também os que fustigaram os bichos como o atirador solitário que derrubava de uma janela com tiros de rifle as garças, atobás e outras aves migratórias e ainda o caso dos estudantes predadores que churrasquearam um javali) nada excede ao feito do búfalo, uma argola no focinho, e que sai da imersão no açude pela rampa e apareceu com seu negrume na antiga Rodoviária do Guadalupe e provocou pânico, as pessoas apavoradas subiam ao teto do terminal ou se protegiam na parte alta da igreja. Nesse momento pinta no local um bebum, jornal embaixo do braço, reconhece o bubalino e lhe dá uma jornalada na cabeça avisando que sabe onde é seu domicílio e o conduz, madrugada adentro, como um pastor contrito pela rua até o Passeio.

Giro esse caleidoscópio e vejo as delicadas gravuras em outdoor de Marcel Leite com um menino mijando laranjada, propaganda da Wimi, num oceano imaginário e ainda os garotos que se banhavam no tanque que aprisionava o Belém. Como o bebum tangendo o búfalo, tento inutilmente reordenar essas imagens e me diluo na apoteose de cromos do tempo perdido como na viagem mnemônica de Proust.










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