Colunista
Luiz Geraldo Mazza

06.03.13
Ética na ginga popular

Discussões sobre deontologia, ética, tem a sua versão acadêmica e a popular. Por exemplo, ocupar-se de Baruch Spinoza, tarefa da engajadíssima Marilena Chauí, doutora em Filosofia, não é monopólio da universidade. O povo, na sua simplicidade, tem a sua vivência do que seja o comportamento ético na ordem social. Um exemplo marcante no mundo lúdico da infância, o dos jogos, é o de render-se às regras de brincar de mãe, pega-pega, ou de barra-barra, mantega ou ainda dos ardís do passa-anel ou ainda no bafo das figurinhas (ontem as balas Zequinha, hoje figurinhas de craques do futebol) e do folguedo da bolinha de gude que admitia até a figura de um desagregador que declarava o direito de “recolutação” (a palavra teria vindo do recrutamento meio na marra da Guerra do Paraguai) das bolinhas em jogo e as recolhia como num ritual consagrado. Recrutadas as bolinhas só havia chio quando os roubados reagiam na pauleira. Tanto as modalidades “turco”, “cobrinha” e búrico observavam o peso sentencial das palavras: quem dissesse em primeiro lugar a palavra “segundo, segundo” sai logo depois do ganhador; também valiam “jeitos”, “altos”, “morrinho moderno”.

Nas brigas havia ética: por exemplo, não se deveria usar pau, pedra, caco de garrafa, tudo no braço e isso chegava ao mundo adulto. Dois dos maiores brigadores de rua de Curitiba, Carlos (Carlinhos) Gonçalves Pereira e seu ex-adverso Valmir Rocha Loures costumavam pegar-se, horas e horas, na troca de socos em pontos afastados, pois preferiam o isolamento. Num dia encontraram-se num café no centro na cidade e começaram a trocar socos diante do espanto dos frequentadores que não ousavam intervir e apartar. Num momento, insólito, um deles pegou um objeto, quase um arma branca, e foi o suficiente para que o outro se recusasse a continuar por um imperativo moral, a quebra de conduta pelo emprego de instrumento que não fosse o uso dos punhos, das gravatas e das pernadas. A reação do inconformado foi sentenciosa como a decorrente do juiz de futebol que aplica um cartão amarelo ou vermelho num infrator e tudo veio num protesto verbal “não brigo mais com você” como poderia ser também o “não brinco mais com você”. A briga aí como folguedo compulsivo.

 

Rego Almeida e Esmaga

Cecílio Rego Almeida estava em guerra contra o governador Alvaro Dias que o afastara da continuidade da construção da hidrelétrica de Segredo, parada que ganhou depois na Justiça. Mostrando duas notas de cem dólares, maná bíblico que jamais caíra nas mãos do Alvino Cruz, “mordedor” clássico da Boca Maldita, procurou cooptá-lo para que saísse por aí falando mal, detonando a imagem do governador. Alvino, o popular Esmaga, teve um momento de hesitação ao dizer ao megaempresário que estava com uma dúvida ética.

Cecílio, habituado ao mundo pragmático das relações empreiteiro-político, ficou espantado com aquilo que lhe parecia uma gloriosa “frescura”. Aí o Esmaga, com aquela cara cínica, fez a explicação: afinal o Alvaro Dias também o “armava”, isto é, lhe dava grana, ainda que não tão grande quanto aquela.

Como se vê, o mundo comum, das pessoas mais simples, do lutador de rua a um “mordedor” de calçada, também é guiado pela axiologia, a escala de valores, do que se deve ou não se pode fazer por um imperativo ético. Há transgressão também como ocorria na “recolutação” das bolinhas de gude, afinal rudemente confiscadas. Quantas vezes sonhei com as “olho de boi” perdidas e também muitas foram as ocasiões em que conjuguei o verbo recolutar em tempos e modos.

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