Colunista
Luiz Geraldo Mazza

08.04.13
Doce/amarga oralidade

Gênio intuitivo era o Marciano de Morretes, mais mitômano que o João Saldanha, e que fazia versões litorâneas do Barão de Munchausen adaptadas à toponímia regional. Já não se curte como no passado o prazer da oralidade que teve sua época de ouro no tropeirismo nos pontos de parada e que fez dos Campos Gerais os nossos maiores cultores do gênero: a prosa campeira de um Horácio Vargas, ponta-grossense, ou do castrense, o médico Lauro Grein.

Mas de Marciano há uma épica ocorrida, por sinal no Vale do Caraguaçu, ali mesmo no caminho da praia: um caçador solitário vê, de repente, no meio do matagal uma enorme capivara, mas atônito descobre que não tem munição e num rasgo de inspiração enche a sua espingarda com os coquinhos de juruvá e mira o animal e o acerta com vários tiros. Anos, muitos anos depois, se acha no mesmo local e ouve um barulho enorme, como se fosse a matilha de catetos, mexendo nas árvores e devastando a mata e eis que de repente vê uma bela capivara com uma palmeira altiva em seu lombo, as palmas bailando ao vento.

 

Saldanha e Mao

Citei o João Saldanha como um dos cultores da mitomania. Um dos seus mais queridos biógrafos, João Máximo, foi piedoso com seus hábitos e uma das mais fortes era a de uma possível participação do jornalista na revolução que levou Mao Tse-Tung ao poder na tal marcha gloriosa como de resto aqui no Paraná, e aí há testemunhos, se falou muito que teria participado da revolta camponesa de Porecatu e que precedeu toda a estruturação, anos depois, do Movimento Sem-Terra, tantas foram as associações criadas ao mesmo tempo e com sentido insurrecional lá pelos anos cinquenta.

Pois Saldanha vai visitar Mao em pleno domínio e ao dele aproximar-se pisa-lhe descuidadamente nos pés. O timoneiro dos povos em tom coloquial e afetivo reclama: “Pola, John!”

Com toda fama de agnóstico, João Saldanha está na casa de Anfrísio Siqueira e tem uma daquelas crises terríveis de enfisema pulmonar, dado o tabagismo do grande jornalista e técnico de futebol, e ouve do ex-prefeito de Apucarana e ex-deputado José Domingos Scarpelini a sugestão de que deveria beber sangue de carpa para neutralizar o transtorno. João aceita e o Scarpa volta, meia hora depois, com uma carpa capturada no Passeio Público, ali perto, e a abre com uma faca e o paciente, disposto a tudo, bebe o sangue ainda quente do peixe. Se melhorou ou não mal se sabe, a verdade é que a crise passou.

 

As mais pesadas

Das que contam do João uma das mais teatrais é a da suposta entrevista que teria dado na Alemanha diante de um jornalista que fazia indagações sobre a violência no futebol brasileiro. No relato próprio o João Sem Medo teria dito que nenhum povo no mundo se esmerara tanto nas técnicas da violência como os germânicos e passou a gritar as designações de campos de concentração como “Dachau”, “Treblinka”, “Bertchesgarden”. Dá para imaginar, se isso fosse veraz, a reação que provocaria e os problemas que geraria inclusive até de ordem diplomática, pela simples metáfora de transformar campo de futebol em sombrios campos de concentração.

Da oralidade sabe-se que é um processo difícil de precisar o início porque as versões de supostos fatos ganham novos elementos quando recontados e assim é difícil apontar o “sic” e o “apud” da parolagem, recriada o tempo todo, numa transformação permanente, quase a “obra aberta” de Umberto Eco.

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