Colunista
Renan Machado

08.06.12
Os carimbos de tia Elvira

Acaso não houvesse se tornado um homem frio, J.N. Tavares, publicitário deveras respeitado em rodas viscerais de conversa, choraria feito uma criança sem colo com o que vislumbrou, logo pela manhã, sentado detrás de sua mesa. Certo que a estagiária sobrepunha as folhas maquinalmente, a esmo, sem emoção... Porém, bastava. O som áspero emitido pelo beijo do carimbo sobre o papel lembrava-o do tempo que era apenas Rapazote, estudante de colegial miúdo e introspectivo. Sentiu necessidade de pedir maior cuidado por parte da menina com os documentos. Mas fez apenas calar-se, absorto em recordações.

Dias bonitos aqueles trazidos a Interiorana pelo inverno de 67. De casacão, enrolado em cachecóis de lã, Rapazote apressava-se com pernas curtas pela rua. O vento rachava-o os lábios. Defronte à padaria – de onde emanava o cheiro quente de pães matutinos – a Biblioteca Raposa D’cauda Astuta de Interiorana: acervo respeitável, clássicos mundiais que abarrotavam as estantes e nenhum registro da origem de seu nome.

Rapazote precipitou-se às escadas e adentrou o prédio. A mochila colorida foi descansar no armário de madeira. Detrás das portas duplas, ácaros seculares e o som de traças faziam companhia aos livros. O menino meteu-se por entre as estantes, eufórico, mas no sapatinho, a fim de evitar as esconjuras de tia Elvira, bibliotecária corpulenta que não tinha sobrinhos, filhos e muito menos marido. Apesar da rudeza dessa mulher ranzinza, fora ela o único motivo das visitas diárias de Rapazote à Biblioteca etecetera e tal de Interiorana por toda a infância.

J.N. Tavares, Rapazote ou o guri pentelho, como tia Elvira reconhecia-o em pensamentos de saco-cheio, nunca lera um livro. Nenhum, em toda vida. Nas manhãs de sua infância, apanhava um volume consistente, mais de quinhentas páginas, romance. Outros dois, menores, duzentos papéis amarelados. No topo da pilha, equilibrado sobre os braços finos, um modesto de poesia. Voltariam todos no dia seguinte, ou no próximo, sem que o menino sequer os abrisse. Mas que importava? Empilhados, iam para a marcação. Rapazote mal podia esperar: apenas uma guria de cabelos revoltos à sua frente na fila.

O primeiro carimbão era o melhor. As mãos gordas da bibliotecária puxavam delicadamente a ficha. Acomodavam o pedaço de cartolina tabelado sobre a madeira da escrivaninha e, com firmeza, cravavam as datas de empréstimo e devolução. Rapazote sorria: saber quão boa aquela sensação só experimentando-a. A ação repetia-se mais vezes, registrava todos os livros. Calada, tia Elvira entregava-os em mãos e cutucava uma campainha, dessas de hotel, que tilintava o chamado para o próximo da fila.

Um telefone tocava. Onde? A estagiária terminara de carimbar papéis e certo que rebolava pelos corredores da agência. Não estava em sua mesa. Tampouco tia Elvira... Que fim levara-a? J.N. Tavares, publicitário, não sabia. Mas e quanto a Rapazote, o guri pentelho? Talvez soubesse dos rumos tomados por ela, com ou sem sua coleção de carimbos.

 

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