Colunista
Renan Machado

05.12.12
Um conto de Natal

Tudo no supermercado chamava-lhe atenção. Os transeuntes apressados abarrotavam o estabelecimento: compras de última hora. A mãe arrastava-o pelo pulso em direção aos caixas. O ruído ensurdecedor dos leitores que registravam preços aquecia, via ânimos exaltados, o clima do local com maior número de pessoas por metro quadrado, na visão do pequeno garoto, naquela véspera de Natal. O casal de perus atravessou para o outro lado. Deslizou pelo aço do balcão e foi descansar aflito próximo às sacolas plásticas, prevendo o que o destino reservava-lhe para aquela noite. As alcaparras embarcaram junto, assim como a peça maciça de queijo, os vidros de azeitona e as duas garrafas de cidra. O que restou fora emplacado no visor: um valor de três dígitos a pagar.

No estacionamento, lembrava-se da advertência materna à saída de casa: não suje essa roupa. A camiseta, em algodão, estampava crianças brincando num playground: saltavam de balanças, deslizavam no escorregador. Um festival. Trepavam nos andaimes de ferro colorido, equilibrando-se, com dificuldade, na corda bamba da infância. A bermuda, de veraneio, abria-se ao vento que refrescava as pernas do garoto. Sandálias cobriam os pés. Relembrando as palavras da mãe, e sabendo do puxão de orelha que levaria caso uma mancha marrom, por menor que fosse, surgisse em suas vestes, o garoto, com cuidado, esgueirou-se entre a porta e a lataria poeirenta do carro para embarcar. Sucesso: “estou limpinho”. Partiram: as compras na mala.

Andaram pouco, errado não dizer. O sol se pusera. Apenas uma linha alaranjada resistia no horizonte, quase noite. No sinal anterior à reitoria, o acontecido. Um sujeito encapuzado, arma empunhada, tocou o vidro com a coronha. A mãe, sem ação, liberou as travas. Tudo se sucedeu muito rápido: a mãe, arremessada pelo encapuzado ao banco do passageiro, chorava. Tentava abraçar o garoto, protegê-lo, quando outros encapuzados adentraram o veículo, puxaram o garoto pelo braço, o sacodiram feito um boneco, a mãe chorava, o garoto chorava e ralava-se inteiro no asfalto, em queda, caído do carro que arrancava no sinal vermelho e perdia-se pela cidade.

As feridas ardiam. A roupa estava imunda pela imundície da sarjeta. Não tinha forças para levantar. Seu mundo fora-se embora, entre balbucios e lágrimas, para, impossível imaginar o contrário, nunca mais voltar. Era o fim. Porém, era Natal. Mundos não se acabam no Natal. O garoto esforçou-se para abrir os olhos, sujos de poeira, quando quatro mãos levantaram-no para longe da rua movimentada. Dois moleques de rua fitavam a pequena figura indefesa que era o garoto. A noite, esta hora, era total. Os moleques maltrapilhos ajudaram o garoto que mancava caminhar até a marquise. Ali, sentaram-se os três.

O Natal chegara. Na companhia dos moleques maltrapilhos, o garoto não provou peru ou azeitonas: dividiram entre si coxas de galinha e um refrigerante sem gás. Não brincaram em algum playground, parecido, ao menos, com o retratado na camisa de algodão do garoto caído de um carro roubado. Dormiram em papelões, sem esperança de que uma figura gorducha, metido em roupas vermelhas, descesse pelo sugar engordurado da pastelaria na qual o trio dormia defronte. Mesmo no verão, fazia frio no Centro. O garoto da camisa de algodão encolheu-se com um sorriso nos lábios: logo seria ano novo.

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