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O escritor deve, mais do que tudo, escrever. A frase, de aparente obviedade gritante, ganha sentido em 2013. Agora, o escritor faz de tudo: canta, dança, estrebucha no palco, passa a maior parte do tempo em mesas de bate-papo, bares, restaurantes, saraus, eventos literários, porões e cafés. O escritor contemporâneo parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Menos a escrever.

Nelson Rodrigues já havia se dado conta desse problema em 1967: “O escritor que faz mais do que a própria literatura ou não é escritor ou é um pulha”. Diante de um contexto no qual a maioria dos escritores é tudo, menos escritor, Roberto Gomes – pasmem – até parece exceção. Filósofo, escreveu uma genial interpretação sobre a maneira nativa de pensar e as imposturas da filosofia produzida em academia.

Mas o que Roberto Gomes gosta de fazer é literatura. Ou melhor, de escrever.  Ele escreve. Reescreve. Escreve outra vez. E não participa do oba-oba chinfrim em que se transformou a vida literária nestes tristes trópicos que chafurda em fabricada alegria permanente.

O mais recente livro de Roberto Gomes, O conhecimento de Anatol Kraft, romance publicado em 2011, passou quase despercebido pelo chamado jornalismo cultural. Em um dos poucos cadernos onde a obra recebeu espaço, o repórter confundiu a voz narrativa, entre outros erros. Em alguma medida, a ficção de Roberto Gomes está invisível no mercado editorial brasileiro.

É verdade que Roberto Gomes evita promoção pessoal, mas aceitou conceder entrevista para a Ideias. Visitou a sede da Travessa dos Editores e, durante três horas, falou de maneira franca e direta sobre seu trabalho e as circunstâncias que o cercam. E se a mídia insiste em ignorar O conhecimento de Anatol Kraft, o próprio Roberto a comenta, em detalhes e revela o seu fazer literário. Todas as casas e Júlia, seus outros romances, também entraram no bate-papo, além da crônica, atividade que ele exerce com regularidade há mais de 15 anos, uma vez a cada 15 dias, na Gazeta do Povo.

Além de autor, ele é editor. Fundou a Criar Edições, que teve dois períodos intensos, um na década de 1980, e outro há poucos anos. Viabilizou obras de Jamil Snege, Alice Ruiz, Paulo Leminski, Sírio Possenti, Helena Kolody, Walmir Ayala, entre outros.

Este bate-papo, transcrito praticamente na íntegra, é raridade. Não é fácil encontrar Roberto Gomes, apesar de ele ser visto caminhando entre o Bosque do Papa e o Parque São Lourenço. Frequenta o café e as salas expositivas do Museu Oscar Niemeyer. Cogita comprar uma bicicleta, mas não pretende aderir ao cicloativismo. Tem horror ao chamado politicamente correto. Fuma 7 cigarros todo dia. E tem senso de humor, o que é raro nesta área do planeta e que sabemos imprescindível para o exercício da inteligência.

O depoimento dele, destaque desta edição de Ideias, é conteúdo para ler, guardar e reler.

 

Ideias: A sua ficção tem, entre outras características, o humor. De onde surge isso?

Roberto Gomes: Hoje, parece que o humor está em falta na ficção brasileira, apesar de haver uma tradição de prosa com humor, da sátira. Me formei leitor lendo Machado de Assis, Lima Barreto, João Antônio, Fernando Sabino, entre outros autores que produziram textos de ironia refinada e um humor, em alguns casos, sutil, mas arrebatador.

 

O protagonista de seu romance mais recente, O conhecimento de Anatol Kraft, apresenta um humor peculiar. Como você elaborou o Anatol?

Um personagem é resultado de inúmeros fatores, de impressões, informações, situações que você viu e viveu, pessoas com quem se relacionou. Agora, na medida em que se cria um personagem realmente consistente, que vive e tem vida própria, você trata esse personagem como uma pessoa viva. O personagem, então, apresenta facetas boas e ruins. Faz coisas agradáveis e outras detestáveis. Observe alguns personagens criados por Dostoievski: até os mais canalhas são, em alguns momentos, adoráveis. O Anatol é um caso de personagem que adquiriu autonomia. Um dia, fui conversar com o Manoel Carlos Karam (1947-2007) e levei o original do romance para ele ler. Então, quando nos encontrávamos, ele dizia: “Olhe ali o Anatol”. Ou, então, comentava: “Parece que o Anatol esteve aqui”. Outras pessoas também fizeram observações semelhantes. O Anatol vive.

 

O conhecimento de Anatol Kraft foi publicado em 2011 e, apesar da boa recepção entre escritores e leitores, não foi publicada nenhuma crítica ou resenha sobre a obra. O que passa?

Pessoas que eu levo em consideração, sujeitos que sabem a respeito do que estão falando, discutem e divulgam O conhecimento de Anatol Kraft. Com o meu romance anterior, Júlia, publicado em 2008, também houve problema de divulgação e recepção. Pouca gente escreveu a respeito, mas o Wilson Martins (1921-2010) ainda estava vivo. Ele leu e afirmou que Júlia é um romance histórico perfeito. Inclusive, me comparou com Gustavo Flaubert. Que mais eu podia querer?

 

A crítica literária acabou?

No Brasil, sim. O Wilson Martins foi o último crítico de literatura em nosso país. Agora, a tarefa ficou sob responsabilidade de jornalistas, que não são críticos, e estão com a missão de divulgar livros. O sujeito, no caderno de cultura, escreve resenhas a partir de releases de editoras, o que não tem nada a ver com leitura crítica.

 

Qual o efeito da crítica acadêmica?

A análise da literatura realizada dentro das universidades não atinge a sociedade. Mas gostaria de acrescentar algo a respeito da atuação dos chamados jornalistas culturais. A literatura que os jornalistas elegem como a que merece divulgação, não vende. E um outro tipo de literatura, que os segundos cadernos omitem, fica condenada ao esquecimento.

 

Os muitos conhecimentos, por exemplo, que estão nas linhas e nas entrelinhas de O conhecimento de Anatol Kraft sem divulgação em jornal, ficam, em alguma medida, condenados ao esquecimento?

Há alguns conhecimentos expostos no livro. Por exemplo, a namorada do Anatol é quarenta e poucos anos mais nova do que ele, e isso é um fator complicador. O que ela conheceu desse homem para querer se dedicar a ele? O Henrique, um personagem bem mais novo que o Anatol, insiste em entrevistá-lo. O Anatol tem mais experiência, conhece algumas coisas mais do que os outros. Há uma série de questões no livro, entre os quais ciúme, liberdade, posse, luta, conquista, etc.

 

Você falou que um personagem surge de pessoas com quem o escritor conheceu e se relacionou. Quem foram as pessoas em que você se inspirou para criar o Anatol Kraft?

Aconteceu de eu conhecer durante toda a minha vida várias figuras semelhantes ao Anatol. Em Santa Catarina, meus professores eram 80% alemães. E os alemães são criaturas diferentes por terem convicções muito fortes. Os alemães são capazes de brigar por causa de ideias. O Anatol é assim: um personagem germânico, dono de determinadas ideias e que discute e briga pelos seus pontos de vista, diferentemente dos brasileiros. O brasileiro não discute nada, não questiona nada. Tive um professor de desenho que veio da Alemanha, foi boxeador e tinha um barco. Era uma figura extraordinária. Aprendi muito com ele, não só a desenhar, mas nas conversas, batendo papo. Ele tinha teorias absurdas sobre tudo, explicações a respeito de qualquer assunto, e tudo o que ele falava era extremamente fascinante. Acho que a partir do contato com esse professor, passei a prestar atenção neste tipo de sujeito, que faz extravagância e desafia a pensar. E veja a situação atual: as pessoas estão querendo ser politicamente corretas, iguais, próximas, ninguém quer entrar em confronto, todos evitam qualquer conflito. Tudo está se tornando muito chato.

 

Além do conhecimento, a memória é outro tema de sua literatura, a exemplo do que você escreveu no romance Todas as casas, de 2004.

Morei em Blumenau (SC) em uma casa que tinha a metade da frente ocupada pelas oficinas do jornal que meu pai dirigia. Eu era menino e o meu pátio era ali: ficava o dia todo escutando aquele barulho e vendo aquilo tudo. Bom, aí entra o assunto memória. Falam da memória como se fosse apenas uma memória, mas também tem a memória daquilo que você vive, do que te contam e ainda do que alguém te ensinou. Há uma série de gradações que, inclusive, se transformam com o passar dos anos. Tem um fato que você lembra de um jeito e, quando vai recuperar aquele assunto, transforma em outro evento. Ao fazer isso, você não está necessariamente mentindo, mas transformando as coisas. Em Todas as casas, o personagem central passa de uma casa para a outra, e é como se cada casa possuísse a memória de um certo período da vida.

 

A memória também está presente, direta e indiretamente, no romance Júlia, de 2008, contextualizado no final do século 19, entre o fim da escravatura e o início da república.

A memória tem um papel importante, como acontece, sim, em muitas narrativas. Em Júlia, há o contexto histórico que é a própria história que aconteceu com Júlia da Costa, mas também há o trabalho de compor, recompor essa memória. Em São Francisco (SC), onde a ação se passa, se reproduzia tudo o que acontecia no resto do País, seja o impacto da presença do imperador, as lutas, os anseios por libertação, etc. Antes de escrever e mesmo durante o processo de escrita, um amigo me chamou atenção para um detalhe: ele comentou que eu teria de levar em conta o fato que, como era um romance histórico, tudo já teria acontecido, e eu deveria juntar acontecimentos e memórias. No caso de Júlia, tudo já aconteceu, alguém já sabe o que aconteceu, não há mistério. Mas, ao mesmo tempo, você não sabe de todas as relações que existiam entre as coisas que aconteceram.

 

E a sua relação com a crônica?

Crônica é um barato. Comecei escrever crônica aos 16 anos, época em que meu pai tinha um jornal em Blumenau. Aqui em Curitiba, publiquei crônicas esparsamente. Depois, fui para a Gazeta do Povo e então se tornou um trabalho sistemático. Já são mais de 15 anos. Na época, entrei em companhia do Jamil Snege (1939-2003) e do Carlos Dala Stella. Revezávamos. Cada um escrevia um texto publicado na edição de domingo no Caderno G, de modo que o compromisso de cada um era um texto a cada 21 dias. Depois, o Carlos saiu, e o Jamil e eu passamos a fazer um texto a cada 15 dias. Quando o Jamil morreu, em 2003, o Domingos Pellegrini passou a escrever, e assim estamos até hoje.

 

Você reuniu algumas dessas crônicas no livro Alma de bicho. Quantas crônicas você escreveu para a Gazeta do Povo?

Até aqui, são 460 textos. E gosto muito. Acho a crônica uma delícia porque você refina o texto. Tem o desafio do espaço. São apenas três mil caracteres. Acho ótimo: você tem que se virar dentro daquilo. De repente, você inventa uma história que precisa de cinco mil caracteres e tem que resolver em até três mil. O exercício da concisão é um desafio sensacional.

 

E os assuntos para a crônica?

Às vezes, a crônica pode reproduzir circunstâncias que estão em volta, no nosso entorno. Isso também é uma forma de fazer jornalismo. Mas tem crônicas que, na verdade, são contos. O Fernando Sabino fez isso a vida inteira. E o conto, publicado como se fosse crônica, é uma maneira que o cronista tem para analisar um fato. O Rubem Braga, por exemplo, conseguia olhar para uma borboleta e transformar o tema em uma crônica na qual, em uma primeira camada, parecia que não estava acontecendo nada, mas com uma linguagem capaz de encantar todo e qualquer leitor.

 

Por falar em encantar leitor, do ponto de vista do editor que você é: como está o mercado editorial?

Enfrentamos um impasse. Por exemplo, desde a década de 1970 há um esforço para colocar a literatura infantil na escola e, com isso, formar uma nova geração de leitores. E todo mundo que se meteu neste negócio se arrependeu. Hoje, se percebe que essa ação não teve efeito. Para piorar a situação, apostam nesses livros descartáveis, por exemplo, da chamada autoajuda. Dizem que, de repente, o sujeito começa a ler autoajuda e depois vai ler literatura. Mentira. O sujeito que lê autoajuda fica viciado em autoajuda. Às vezes, tenho a impressão de que os leitores, principalmente de literatura, estão em extinção. Vivemos uma situação difícil, no que diz respeito ao mercado editorial.

 

E o culto a livros com linguagem rebuscada?

Tem muito autor que faz piruetas com a linguagem para dizer nada ou no máximo alguma coisa mínima. Na literatura contemporânea, inclusive no Brasil, há excesso de exercício de subjetividade. A literatura precisa recuperar a sua essência e voltar a ter boas histórias e bons personagens. Agora, a maior parte dos autores parece apenas preocupada em elaborar construções verbais que possam parecer guardar profundidades abissais, quando na verdade boiam na mais reles superficialidade. Há textos literários que parecem anunciar um grande feito, mas não passam de um balão de gás, vazio. Há uma tradição barroca, que vem de Portugal, que prejudicou muito a literatura brasileira e que gerou esse culto à frase rebuscada e à construção inversa.

 

Que autores fizeram a sua cabeça?

Muitos, do Ernest Hemingway até o Gogol. Inclusive, traduzi um livro dele, Capote/ O Retrato, para a L&PM. O Gogol é um autor fantástico, que faz um tipo de literatura que me fascina.

 

O que você está lendo agora?

Sabe, em livros de memória há personagens mais interessantes do que na ficção. Porque os ficcionistas querem fazer firulas e pose. Estou lendo um livro do Medeiros e Albuquerque (1867-1934), Quando eu era vivo. É um autor sensacional. Foi jornalista, representante do Brasil na França e participou da Proclamação da República. Ele recompõe a época em que viveu. E, acima de tudo, tem um humor fantástico. 




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