Cultura
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
03.09.2015
03.09.15
Há flores por todos os lados, há flores em tudo que eu vejo
por Adriana Sydor

“A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega. Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
[…]
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
[…]
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.”
(Primavera – Cecília Meireles)

Zélia Duncan. Foto: Guilherme Berti
Djavan. Foto: Reuters
Titãs. Foto: Marcos Hermes

Ah a primavera! Abrimos os braços e respiramos fundo os aromas que nos invadem primeiro os olhos, depois todos os sentidos. Como é bom quando a paisagem se demora colorida e a cidade nem parece tão cinzenta, barulhenta ou entupida. É uma espécie de revelação da natureza, uma afirmação com hora marcada para provar que mesmo quando o homem insiste em catedrais imensas, em prédios que ficam cobertos por nuvens, em calçadas impermeáveis, ela pode driblar os tons monocórdios e ser mais. A vitória das cores naturais...
Na música nossa de cada dia isso também acontece e flores são perfumes que têm som, nome, mensagem. Quem abre essa primaveril edição é Zélia Duncan, com música de Fred Martins e Marcelo Diniz, consulte o YouTube, respire fundo e entregue-se: “Flores para quando tu chegares / Flores para quando tu chorares / Uma dinâmica botânica de cores / Para tu dispores, pela casa / Pelos cômodos, na cômoda do quarto / Uma banheira repleta de flores / Pela estrada, pela rua, na calçada / Flores no jardim”.
E Renato Rocha, hein? Compôs para o MPB-4 interpretar a singeleza de ser flor: “O verbo flor é conjugável / Por quase todas as pessoas / Em certos tempos definidos […] Quando eu flor / Quando tu flores / Quando ele flor / E você flor / Quando nós / Quando todo mundo flor”.
A flor de lis não serviu só como antigo símbolo da realeza francesa. Ficou marcada também em outros cantos das culturas do mundo. Brindou o México com bolero de Augustin Lara no repertório de Pedro Vargas e, claro, nas primeiras horas de Djavan na MPB: “Será, talvez, que minha ilusão / Foi dar meu coração com toda força / Pra essa moça me fazer feliz / E o destino não quis / Me ver como raiz / De uma flor-de-lis”.
Outras flores bem específicas da botânica também ganharam acordes. Por ordem de lembrança: Flor de Maracujá, de João Donato e Lysias Ênio: “Lá no avarandado na luz do meio dia / O segredo dos teus olhos tanta coisa me dizia / O cabelo solto ao vento, o teu jeito de olhar / E no seu corpo moreno, a flor de maracujá”. Flor de Mandacaru, de Chico César: “Manda, caru / Uma flor dessa do sertão / Uma flor de cardo / Pra alegrar meu coração / Só pra guardar de recordação / Do tempo da meninice / Pois de recordar carece / Como uma prece sem fim / Manda, caru / Flor de mandacaru pra mim”.
Vinícius de Moraes o mais impressionante dos amantes da nossa história disse uma vez que para viver um grande amor, entre outras coisas, é preciso ter um crédito com o florista. Sim, é! Afinal, qual mulher não se desmancha em comoções diante de um bem arranjadinho buquê? Na canção “A namorada que sonhei” de Osmar Navarro, que ganhou a voz de Nilton Cesar, naquela tão boa cafonice de outros tempos, o autor sabe bem o que intencionava com o gesto: “Receba as flores que lhe dou / Em cada flor um beijo meu / São flores lindas que lhe dou / Rosas vermelhas com amor / Amor que por você nasceu”. A força bruta que era Tim Maia não lhe impediu as delicadezas do cantar em nenhuma ocasião, e também a do gesto tão singelo de declarar amor em forma de flor entregue em mãos. Assim fez na canção de Cassiano e Sílvio Rochael: “Porque é primavera / Te amo / É primavera, te amo, meu amor / Trago essa rosa, para lhe dar”.
Maestro, um instante para a composição de Nelson Jacobina e Jorge Mautner, um clássico da discografia de Gilberto Gil, Maracatu Atômico: “No meio da couve-flor tem a flor, tem a flor / Que além de ser uma flor tem sabor”. Há outras flores saborosas por aí, mas esse é assunto para outra pessoa da família Gil Moreira Passos, a tão comentada Bela, que administra tudo do reino vegetal pela gastronomia.
É este o tempo de tirar os vestidos do armário, de ensaiar volta pela praia, de começar a despir o corpo. É tempo das caminhadas de fim de tarde ou de começo de dia. É tempo de sorrisos, de ganhar os beijos do sol. No giro do planeta há vida começando, renascendo, refazendo, ressurgindo. Há continuação, permanência, prosseguimento. Mas tudo isso é símbolo indiscutível e paradoxal da efemeridade. A primavera nos ensina: a vida inteira pode caber dentro do momento do perfume da flor.
A coluna se despede com música de Paulo Miklos, Sérgio Britto, Toni Bellotto e Charles Gavin, um dos pontos altos da discografia dos Titãs, Flores: “Há flores cobrindo o telhado / E embaixo do meu travesseiro / Há flores por todos os lados / Há flores em tudo que eu vejo”.


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