Agora eu se consagro

Fernando Sabino, certa feita, publicou dura crítica a uma tradução. O pobre tradutor não percebeu uma expressão idiomática e interpretou ao pé da letra. To the foot of the letter, por assim dizer. Mas, porque a vida é essa caixinha de surpresas que dizem os boleiros, não levou muito para que o próprio Sabino fosse flagrado em erro semelhante. Como escritor sempre faz, de limão, limonada, a história do Sabino virou crônica e das boas.
Ciente desse conto tragicômico, sempre morri de medo de escrever qualquer linha sobre erros a que todos estamos sujeitos, especialmente os de gramática. Há certas coisas que não se deve apontar. Nasce verruga no dedo ou comete-se o mesmo deslize logo em seguida.
Ao escrever sobre erros gramaticais, o perigo é multiplicado. Indiferente aos riscos, acordei aventureira. Dito isso, agradeço de antemão à nossa revisora, Dra. Márcia Campos, a quem já muito devo, e me ponho aqui a julgar os malfeitos, como gosta a presidente, contra a última flor do lácio.
Comecemos por aí mesmo. Não sou adepta do “presidenta”. Me desculpe a autoridade máxima do País, mas me recuso. Governantes vão e vêm, a língua pátria fica. Um pouco abatida, mas fica.
Aliás, não me convide para nenhum modismo do politicamente correto. Já fiz uso e cansei de seguir a moda. No meu tempo de movimento estudantil, colocava-se uma arroba no lugar da desinência nominal para indicar algum tipo de gênero indefinido. Por exemplo, o substantivo opressor amigos, virava o feminista amig@s, passando a valer para homens e mulheres simultaneamente.
Percebo pelo Facebook que essa moda já passou. Agora o politicamente correto é dizer amigxs. Sim, com xis. Assim não se restringe a palavra aos gêneros preestabelecidos, todos opressores da nova sexualidade.
Confesso que, conforme a idade avança, fica difícil até acompanhar os novos acordos ortográficos, quanto mais as modas e novidades da “galera descolada”. A expressão é para você sentir como estou atrasada na gíria.
E você já reparou que há uma nova moda gramatical? Baseia-se na ideia de que existem letras cultas e incultas. Desde o fiasco do “i de escola”, da Carla Perez, muita gente passou a achar que a letra i deveria ser banida do alfabeto. Passaram a trocar todos os is por es. Defenido, despensável, privelegiado ou privilegeado, esquesito, desparate e até relógeo. Tudo isso aparece com cada vez mais frequência nos textos por aí afora. Os adeptos sentem-se superiores, corrigindo os mortais que ainda estão no tempo do i.
Cedilha também é coisa de periferia, imaginam. Bom mesmo é usar os dígrafos. Como o release para a imprensa de um político que vi com meus próprios olhos e que trazia uma fantástica palavra com seis esses. Dizia o famigerado texto: “o político Sicrano irá fazer a assessorassão do governador”. Ó, dó!
E em tempos de deputados presos, é bom o assessor ficar atento. Não convém confundir mandado de prisão com mandato na prisão. A mistura pode até gerar moda nova, neologismo ou coisa que o valha. Mandado de prisão pode vir mesmo a ser um tipo de mandado novo. Natan Donadon que o diga.
A verdade é que esses maus hábitos dos prepotentes rondam a língua desde os tempos do “a nível de”, ou há muito mais. O triste é que o sujeito erra crente de que está abafando. São esses os erros que me perturbam, os erros gramaticais dos pretensos entendidos. Saem a colocar um “se” em tudo quanto é frase, se é que se nos entendemos.
“Agora eu se consagro”, brinca um locutor esportivo também cansado da tendência. Consagrar-se é a ânsia dos adeptos desses nefastos modismos. Não são enganos propriamente ditos, aqueles que a gente comete por lapso. Essas falhas são quase intencionais. São erros da petulância.
Como diria um outro assessor nativo, falta “censo de nossão”.