Os hipercaras de pau da MPB

João Bosco e Aldir Blanc, a dupla criadora de Incompatibilidade de Gênios. Foto: Divulgação
E quem disse que só cabe amor, saudade, vingança e outras fortalezas desse tipo na MPB? A música é espaço livre, garantido para qualquer nobreza de comunicação. Até o mais cara de pau dos homens pode usar os versos para contrabandear suas malandragens cotidianas, suas armações rotineiras, seus desmandos incompreensíveis…
O primeiro da lista é Lupicínio Rodrigues. Sim, ele mesmo, o rei da dor de cotovelo também é candidato ao título de descarado número um da MPB! Acompanhe a história, história verídica: ele e Heitor Barros eram amigos. Lá pelas tantas, Lupe esticou os olhos para a namorada do colega de boemia e não teve dúvidas, era ela que ele queria em seu chatô… A música ao mesmo tempo que relata o ocorrido é uma medição das condições atmosféricas da amizade e do que ela suportaria. Lupicínio queria os dois: o amigo e a mulher. Zuza Homem de Melo em seu livro A Canção no Tempo explicou bem direitinho os aspectos:
“Para evitar o rompimento, procurava convencê-lo de que a amizade dos dois era mais importante do que a mulher (“Será que tinha coragem / de trocar a nossa amizade / por ela que já lhe abandonou…”), ao mesmo tempo em que lhe comunicava um fato consumado (“eu falo porque essa dona / já mora no meu barraco…”) e de difícil reversão (“de dia me lava roupa / de noite me beija a boca / e assim nós vamos vivendo de amor”).”
O resultado? Heitor gostou do samba e não resistiu ao apelo. Lupicínio continuou com a dona e com o amigo. Mais, a música atirou o compositor para o Brasil, promoveu seus intérpretes Ciro Monteiro (em 1938) e Elza Soares (em 1958) e entrou para a galeria dos melhores sambas da história.
Dos personagens da MPB, o Arnesto é tipo conhecido: furão, convidou turba para um samba e saiu de casa sem explicativas. E os amigos, com o nariz na porta, indignados, solicitaram ao menos um recadinho do caloteiro analfabeto: “Ói, turma, num deu prá esperá, aduvido que isso num faz má, num tem importância. Assinado em cruz porque não sei escrever, Arnesto”.
O curioso da história é que o cara de pau em questão é o próprio Adoniran, que, ao conhecer o músico Ernesto Paulelli, em 1938, foi logo passando recibo: “Vou te fazer um samba, teu nome dá samba. Você aduvida?” Não adiantou o recente amigo corrigir a pronúncia do nome, 17 anos depois ele estava batizado para todos os públicos: Arnesto. Também suas reclamações foram em vão quando encontrou Adoniran e reclamou da fama de inconfiável nos convites, o compositor respondeu: “Sem mancada não tem samba!”.
A música leva assinatura do parceiro de outras, Alocin: “O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás / Nós fumos não encontremos ninguém / Nós voltermos com uma baita de uma reiva / Da outra vez nós num vai mais / Nós não semos tatu! / No outro dia encontremo com o Arnesto / Que pediu desculpas mais nós não aceitemos / Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa / Mas você devia ter ponhado um recado na porta”.
E o que dizer do protagonista de Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc? O sujeito queixa-se da patroa por todos os poros, passa uma vida de provações, sofre por conta das mais diversas situações: “Jogava o Flamengo, eu queria escutar / Chegou, mudou de estação, começou a cantar / Tem mais, um cisco no olho, ela em vez de assoprar / Sem dó falou que por ela eu podia cegar […] Se eu tô devendo dinheiro e vem um me cobrar / A peste abre a porta e ainda manda sentar / Depois, se eu mudo de emprego que é pra melhorar / Convida a mãe dela prá ir morar lá”. A grande piada, o cúmulo da cara-lisa, é que ele só decide se separar depois de acertar um bilhete: “E ontem, sonhando comigo mandou eu jogar no burro / E deu na cabeça a centena e o milhar / Ai, quero me separar”.
Eu já ouvi citações sobre a senhora de Camisa Amarela, de Ary Barroso, como pertencente ao clube da Amélia da MPB. Há quem a reconheça como a mais submissa das mulheres, a que perdoa toda a farra do amante durante o carnaval e lhe cura o porre, com carinho e dedicação e um copo d’água com bicarbonato. Mas há fato curioso nessa amante dedicada: ela conseguiu narrar as aventuras do amado porque de alguma forma fazia parte de suas andanças pelo circuito da folia carioca. Ela, cheia de dengos no contar e sem pontas de ressentimento, também estava na Avenida Rio Branco onde o encontrou pela primeira vez, depois quando ele desaparece na Galeria Cruzeiro, ela seguiu a vida, o baile, e só voltou a vê-lo no café Zurrapa, onde, claro, também estava. Essa mulher, testemunha das farras do marido, também bem soube aproveitar os dias de Momo e conta e canta cada pedacinho com doçura de quem não quer levantar pistas. É ou não é candidata à cara de pau?
E Ismael Silva e Nilton Bastos? Criaram em 1931 o até hoje cantado Se você jurar. O samba traz uma espécie de malandro que pensa em regeneração, mas que tem carne fraca… é quase uma desculpa para os deslizes futuros. O recado bem humorado é, também, o tratado da picaretagem: “Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me regenerar / Mas se é para fingir, mulher / A orgia assim não vou deixar”. A criatura declara sofrimento pela lealdade e, sem delongas, manda logo seu recado: “A minha vida é boa / Não tenho em que pensar / Por uma coisa à-toa / Não vou me regenerar”. Um safado honesto!
Agora, o grande folgado da nossa música é o frequentador de bar inventado por Noel Rosa e Vadico em Conversa de Botequim, de 1935. Após o primeiro pedido pertinente, de pão com manteiga e uma média, o malandro dá várias ordens descabidas ao garçom: “Feche a porta da direita com muito cuidado / Que não estou disposto a ficar exposto ao sol / Vá perguntar ao seu freguês do lado / Qual foi o resultado do futebol”. Rapidamente o café se transforma em sua casa, em seu escritório, em sua propriedade: “Vá pedir ao seu patrão / Uma caneta, um tinteiro / Um envelope e um cartão / Não se esqueça de me dar palitos / E um cigarro pra espantar mosquitos / Vá dizer ao charuteiro / Que me empreste umas revistas / Um isqueiro e um cinzeiro” e mais: “Telefone ao menos uma vez / Para três quatro, quatro, três, três, três / E ordene ao seu Osório / Que me mande um guarda-chuva / Aqui pro nosso escritório”. A música até esse ponto parece não ter mais possibilidades de confiança maior por parte desse ator, mas ele desfecha com um pedido de empréstimo e o anúncio de que a conta vai para o caderninho de fiado: “Seu garçom me empresta algum dinheiro / Que eu deixei o meu com o bicheiro / Vá dizer ao seu gerente / Que pendure esta despesa / No cabide ali em frente”.
Noel, pelo histórico de frequência e observação de bares e cafés, imprimiu interpretação perfeita à história, que também foi cantada com sucesso por Aracy de Almeida e depois dela por toda a sorte de cantores do século passado.
Uma curiosidade: há testemunhos de que, na época, 34 43 33 era o telefone de um hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro. A informação não tem comprovações documentais, mas cai como luva à história e ao espírito bem humorado de Noel.
Malandros, reis da simpatia, canastrões de todas as horas, a MPB aceita com bom humor e espelho também esses tipos, porque se há na vida, há na música! E se Chico explicou que o malandro é o barão da ralé, que venham todos os tipos para que possamos gargalhar em todos os compassos…