Segredos de liquidificador

Cazuza. Foto: Reprodução/site pmc.com.br
Os beijos na MPB
Há alguns anos, descobri atônita que há culturas em que o beijo não existe. Achei fato impossível na humanidade. Como assim sem beijo? Fiquei curiosa, mas mais que isso, triste. E tão triste que nem quis pesquisar mais para saber o que substitui o ato. Hoje, essas informações me faltam para compor este texto. Como opção, prefiro grifar minha ignorância e dizer que todo mundo beija. Ou não beija e gostaria de beijar. Na MPB, pelo menos, é assim.
Quem abre esta edição é Roberto Martins e Mário Rossi, que lá no início da década de 1940 escreveram a imortal e super, ultra, mega regravada Beija-me. Dona de versos quase inocentes, beirando o infantil, falam de coisa séria, seriíssima: “Beija-me, deixa o teu rosto / Coladinho ao meu / Beija-me, eu dou a vida / Pelo beijo teu / Beija-me, quero sentir o teu perfume / Beija-me com todo o teu amor / Senão eu morro de ciúme […] Ai, ai, ai, que coisa boa / Que gostinho divinal / Quando eu ponho a minha boca / Nos teus lábios de coral”.
Também com muita vontade de beijos, mas dessa vez de forma um pouco mais sensual, Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay em Beija eu. Apesar de a criação ter nascido pela forma em que o filho de Arnaldo falava, aquela coisa sem estrutura ou compromisso no jeito totalmente coloquial das crianças se comunicarem (beija eu, em vez de beija-me), a composição tem sugestões apreciadas mesmo no mundo adulto: “Molha eu / Seca eu / Deixa que eu seja o céu / E receba o que seja seu / Anoiteça e amanheça eu / Beija eu, beija eu, beija eu, me beija / Deixa o que seja ser”.
Beijo de hortelã, beijo de café, de feijão, de paixão, de pavor… Chico Buarque tem repertório vasto de beijos. Eles pipocam diferentes em suas histórias, como, por exemplo, o beijo que tinha objetivo de selar a História de Lily Braun, em parceria com Edu Lobo: “Como amar esposa / Disse ele que agora / Só me amava como esposa / Não como star / Me amassou as rosas / Me queimou as fotos / Me beijou no altar”. Ou aquele que entorta a cabeça, como em O meu amor, para Ópera do Malandro, que fazia Teresinha confessar: “O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / E que me deixa louca / Quando me beija a boca / A minha pele toda fica arrepiada / E me beija com calma e fundo / Até minh’alma se sentir beijada, ai”. Ou, ainda, em parceria com Vinicius em Valsinha, que coroou momento de fantástica realidade: “E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou / E foram tantos beijos loucos / Tantos gritos roucos como não se ouvia mais / Que o mundo compreendeu / E o dia amanheceu / Em paz”.
Outra beijoqueira da MPB é Vanessa da Mata. No trabalho de estreia, na locomotiva que puxou o trem de sua carreira, ela já declarava: “Não me deixe só / Tenho desejos maiores / Eu quero beijos intermináveis / Até que os olhos mudem de cor”.
E a dupla Felixbravo, que pode ser encontrada em nossa Curitiba ou em qualquer outro lugar do mundo, também sabe desse assunto: “Se eu tocar você / Vai ser pra te encantar / Com o que eu puder te dar / Beijos em aluvião / Muitos, eu hei de tascar”, letra de Encantada. Ou também em Arteiro: “Se a arte é som no ouvido evocando ao teu céu / Esse sim é o ensejo / Beijo de um desejo que eu criei para quem me quiser”.
Mas quando bocas prometidas não se encontram, o vazio se faz e há reconhecimento por esse estado de separação. Foi mais ou menos isso que o alagoano Junior Almeida escreveu em A cor do desejo, que chegou à voz de Ney Matogrosso para se apresentar ao Brasil e às bocas que sabem da distância de outras bocas: “A tua boca anda oca / Da minha língua / A minha língua anda à míngua / Sem tua boca […] Exatos são teus beijos que me acertam / E a ti revelam meu coração”.
As despedidas sempre são difíceis. É comum que haja briga, desentendimentos, flagrantes, loucuras sem fim – o desamor mostrando armas. Mas há um tipo de adeus melancólico, uma tristeza do momento que chegou para ecoar pelos dias futuros. Quando a hora da despedida definitiva chega com beijo, tudo parece ficar ainda mais recheado de amor, de amor ao contrário e de respeito ao amor vivido. Coisa aterrorizante e bonita. Milton Guedes contou: “Esse foi um beijo de despedida / Que se dá uma vez só na vida / Que explica, tudo sem brigas / E clareia o mais escuro dos dias”.
Triste quem não tem o beijo, quem sofre a ausência, quem sabe dos poderes de comunhão e não consegue mantê-lo por perto. Dalva de Oliveira cantou essa tristeza traduzida nos versos de Marino Pinto e Mario Rossi: “Que será / Da minha vida sem o teu amor / Da minha boca sem os beijos teus / Da minha alma sem o teu calor”. Empresa difícil essa.
Mas o melhor, o melhor mesmo, é se entregar ao ato. De uma forma ou de outra, todo mundo quer beijar. E é com a sugestiva composição de Fausto Nilo, Moraes Moreira e Pepeu Gomes, que rendeu um disco de ouro a esse último em 1981, que fecho a coluna. Um beijo e até mês que vem ou em edição extraordinária.
“A flor do desejo e do maracujá / Eu também quero beijar / Haja fogo, haja guerra, haja a guerra que há / Do Farol da Barra ao Jardim de Alá / Eu também quero beijar / Da pele morena daquela acolá / Eu também quero beijar.”