Uma invenção machista

Essa matéria, em primeiro lugar, teria o seguinte título: Contra a Nossa Vontade. Para mostrar o óbvio sobre o assunto. Mas como se sabe, o óbvio ainda não se faz presente, então o título muda. E começo do começo, explicando o porquê da Cultura do Estupro ser uma invenção machista e como, de fato, ela existe.
Com o caso do estupro coletivo da menina de 16 anos do Rio de Janeiro, o assunto já tão discutido por feministas veio à tona ao grande público. A tal da Cultura do Estupro. Cultura que pode chocar e causar dúvida sobre sua existência. Primeiro vale conhecer o conceito de cultura. Nas palavras da professora do IFPR Mabelle Bandoli, “cultura é um termo com inúmeros significados. Chamamos de cultura as atividades humanas ligadas às artes, à comunicação e transmissão de conhecimento; chamamos de cultura o conjunto de crenças e hábitos de um povo, sua identidade e características específicas, coletivamente compartilhadas e construídas ao longo da história; chamamos de cultura tudo aquilo que se produz de forma perene e sistemática, tudo aquilo que cultivamos como espécie humana.
Cultura, diz-se em ciências sociais, é aquilo que nos humaniza, nos torna especiais em relação aos demais animais que habitam este planeta. Cultura é aquilo que, ao produzirmos, nos produz. É o que faz do mundo inteiro o nosso habitat, é o que nos liga ao mundo e uns aos outros. É a essência da nossa condição humana.”
Portanto, a cultura não é somente algo bom que nós produzimos e reproduzimos. Nós podemos viver numa cultura cruel. Nós podemos reproduzir suas formas de opressão. Mesmo sem saber ao certo como e por quê. Nossa memória coletiva é construída com base na História que por várias vezes beneficiou o lado do vencedor, o lado do Estado, o lado de uma ideia dominante. E nessa relação de poder dentro da sociedade criou-se diversos mecanismos de dominação, onde os mais “fracos”, os marginalizados desse meio, os menos ouvidos se tornaram mais vulneráveis a opressões e silenciamentos.
Quem idealizou e pensou sobre a existência dessa cultura específica foram feministas do século passado, na década de 70, nos Estados Unidos. Elas, ao pensarem nos diversos mecanismos de controle historicamente construídos e das relações de poder existentes na sociedade, desenvolveram o conceito de Cultura do Estupro. Que está presente nos mínimos e máximos detalhes da vida.
O estupro acontece, pois sabe-se que um ser tem controle sobre o outro. Esse outro não consentiu o ato. Mas o ser que estupra sente-se no direito de estuprar. Que para ele, na sua cabeça, pode não ser um estupro. Muitas vezes, pensa-se que isso é uma doença, uma patologia que assola nossa sociedade. Mas não é, o machismo encontrado a cada esquina é quem possibilita tantos casos de estupro.
Somente vivendo numa sociedade machista e que impõe uma virilidade à pessoa do gênero masculino é que encontramos um senso comum que reproduz a seguinte sentença: “a mulher que diz não para dizer sim.” É somente vivendo numa sociedade machista que encontramos justificativas para o estupro de uma menina de 16 anos. “Ela já tinha filhos, ela usava roupas curtas, ela bebia, ela transava quando ela queria”. Somente vivendo numa sociedade machista é que vamos culpar a vítima de um estupro coletivo. É somente vivendo numa sociedade machista que sabemos das inúmeras imposições para sermos consideradas mulheres de respeito, mulheres de família, mulheres para casar. Caso contrário, não merecemos respeito. Somos vadias.
Foi preciso algo brutal e cruel para que essa discussão saísse dos movimentos sociais. Os grandes jornais e emissoras de televisão reproduziram uma indignação geral. Mas também, além da indignação, vários reflexos dessa sociedade machista e misógina foram ouvidos. Na Gazeta do Povo saiu uma matéria sobre a Cultura do Estupro ser uma invenção feminista: “A contradição nisso tudo é que esse mesmo movimento feminista, como participante dos grupos de esquerda, é contra o armamento dessas mesmas mulheres, o que seria a solução para evitar tantos estupros no país; e contra a redução da maioridade penal, o que atingiria muitos dos atuais estupradores. Basta isso para demonstrar que as feministas estão longe de estar preocupadas com as mulheres violentadas.”, disse o autor do texto, Fabio Blanco. Da bizarrice do caso à barbaridade de um discurso como esse. Não é matando, nem prendendo que vamos reeducar nosso meio. Não é relativizando a violência contra a mulher que vamos solucionar nosso problema. Não é excluindo a responsabilidade do machismo nessa cultura que ficaremos de consciência limpa.
O Brasil teve no ano passado ao menos 47.646 estupros. É o que mostram os dados oficiais das secretarias estaduais da Segurança coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso equivale a um caso a cada 11 minutos, em média, no país. Em ‘Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde’, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que apenas 10% dos casos chegam ao conhecimento da polícia.
A Cultura do Estupro não afeta somente a mulher. Os casos contra crianças são noticiados cotidianamente. E não é dando uma arma a uma criança que iremos ver justiça. Percebemos aí a relação de poder da Cultura do Estupro. Os grupos marginalizados, as mulheres transexuais e travestis, as mulheres bissexuais e lésbicas, as crianças. Estamos todos passíveis dessa violência.
Esse quadro só poderá ser combatido quando tornarmo-nos conscientes que a cultura existe e lutarmos contra essas imposições. Pedindo ao Estado políticas públicas efetivas de enfrentamento à violência contra a mulher. Combatendo um medo generalizado de denunciar o agressor. Exigindo uma educação que englobe e não exclua. Debatendo gênero nas escolas, lutando por uma educação não sexista, não machista e que respeite o diverso dentro de todas as mulheres e pessoas.
Enquanto esse lado da nossa cultura existir, a face bela fica ofuscada, oculta e inexistente.